No auge do processo de aprofundamento da União Europeia, uma das evoluções mais notórias prendeu-se com a relativização do conceito de fronteira. A cri­ação do chamado “mercado único”, a par da concretização das clássicas quatro liberda­des – de circulação de pessoas, bens, capitais e serviços – fizeram com que as clássicas fronteiras estaduais, típicas e indissociavelmente ligadas ao não menos clássico conceito de Estado-soberano – se tivessem diluído ou, parafraseando Adriano Moreira, se tives­sem tornado, praticamente, transparentes.

O referido processo apontou, inquestiona­vel­mente, não só para a criação de um amplo mercado único europeu mas, também, para a edificação de um espaço amplo que se pretendeu que fosse de liberdade, segu­rança e justiça. De Lisboa a Berlim, de oeste a leste e de norte a sul desse grande espaço europeu podiam-se cruzar todas as antigas fronteiras sem qualquer burocracia, incó­modo ou per­turbação.

As fronteiras eram, assim, uma leve reminiscência de um passado de uma Europa de Estados-soberanos. Uma maçada ou uma complicação que, parecia, tinha ficado de­finitivamente enterrada na memória de quem as havia conhecido. Em termos muito práticos e para o comum cidadão europeu, essa foi uma das mais sentidas experiências trazidas pelo processo de aprofundamento e construção da União Euro­peia (UE).

Subitamente, porém, sobretudo a partir dos trágicos acontecimentos experienciados pelos Estados Unidos a 11 de setembro, os governos europeus deram-se conta que, em nome da sua própria segurança, talvez fosse necessário repensar o problema e que fe­nómenos como o crime transnacional, o terrorismo e os diferentes tráficos (desde estu­pefacientes a seres humanos) talvez aconselhassem a uma reponderação dos avanços efetuados.

Num primeiro momento, as atenções centraram-se no reforço e monitoriza­ção das chamadas fronteiras externas da União. Sobretudo todos os aeroportos onde pudessem chegar voos de fora da UE e as próprias fronteiras dos Estados periféricos da mesma. Continuava, porém, por resolver, a questão das antigas fronteiras internas – que, apesar de formalmente abolidas, poderiam ser excecionalmente repostas em mo­mentos determinados e face a eventos pontuais.

Portugal, por exemplo, repô-las quer aquando da realização do Euro2004 quer por altura da realização em Lisboa da Cimeira da NATO. Outros países, em situações pontuais e excecionais, tomaram idênticas medi­das.

A crise migratória com que a Europa ainda se vê assolada, na sequência das primaveras árabes e das situações de conflito que germinam junto das suas fronteiras externas, fi­zeram com que a questão ganhasse uma nova e redobrada atualidade e uma acutilância sem igual. Vários Estados da União avançaram, unilateralmente, para a repo­sição das suas velhas e clássicas fronteiras, não faltando exemplos extremados de tal reposição se ter traduzido na edificação de muros e barreiras físicas impeditivas da tal liberdade de circulação que se havia proclamado e que se julgara definitiva.

De um momento para o outro, não foram só algumas fronteiras a renascerem na Europa da União; foram muros a serem reedificados e a voltarem a integrar a paisagem da própria Europa. Muros que, com a queda do de Berlim, se pensara que não mais se voltariam a edificar ou construir num espaço que se pretendeu que fosse de liberdade, mas também de segurança e de justiça.

E assim se chegou aos nossos dias – onde a Europa da União vive a situação contraditória e paradoxal de se proclamar, nos seus tratados fundadores, um espaço de liberdade de circulação de pessoas, bens, serviços e capitais, mas na prática assistir ao cer­ceamento diverso dessas liberdades em vários pontos do seu território, sem ser capaz de dar mostras de conseguir resolver a contradição e o paradoxo.

Porque parece uma evidência que o recurso ao levantamento ou reposição das “velhas” fronteiras outrora eliminadas não é o remédio adequado para fazer face aos novos pro­blemas que se têm vindo a agudizar – nomeadamente as já citadas ameaças do crime transnacional, do terrorismo e dos diferentes tráficos, a que se pode somar a pressão demográfica resultante da crise migratória em curso. Problemas novos não se resolvem nem se combatem com soluções antigas.

Parece, assim, uma evidência que para a Europa da União combater as citadas – e outras – ameaças que impendem sobre o seu amplo espaço geográfico se impõe dar não um passo atrás mas um passo em frente. E se no domínio das fronteiras externas essa ques­tão é razoavelmente pacífica, é no plano das antigas fronteiras internas que o mesmo se coloca com acuidade acrescida.

Mas também aqui, e para parafrasearmos um conhe­cido jargão comunitário, é “com mais Europa e não com menos Europa” ou mais nacio­nalismo ou soberanismo que o problema poderá ter uma solução mais eficaz. E essa solução deve começar por uma redefinição do próprio conceito de fronteira.

A fronteira, hoje em dia, já não se pode afirmar coincidente com a delimitação geográfica dos dife­rentes Estados. Já não é no limite geográfico dos Estados integrantes da União que se situam as suas fronteiras internas. Hoje, estas deslocalizaram-se e estão colocadas em qualquer parte do território de cada Estado-membro da União. Numa autoestrada, numa estrada recôndita, num simples caminho rural de qualquer um dos Estados-mem­bros da UE, aí estão ou devem estar as fronteiras internas da União.

Aí deve ser dado combate sem trégua à criminalidade transnacional, ao terrorismo e aos diferentes tráfi­cos que tenham o território da UE por palco. Não é erguendo muros ou barreiras físicas, onde outrora se situavam as velhas fronteiras soberanistas, que esta criminalidade deve ser combatida. Nem isso pode ser tarefa exclusiva de cada Estado-membro da União. Ou é um combate travado concertadamente e coordenadamente a 27 (ou 28) ou é uma guerra perdida. E a Europa da União não se pode dar ao luxo de perder mais esta guerra se, de facto, ainda quer ser o tal espaço de liberdade, segurança e justiça.