O contra-ataque do Império

O mundo mudou em resultado desta guerra. O próprio sistema político americano está em desagregação, o que leva a que se questione o tempo que o país estará em condições de suportar, na Europa, um conflito cada vez mais dispendioso.

No dia 24 de fevereiro de 2022, a Rússia atacou militarmente a Ucrânia e iniciou uma nova fase da História do mundo. É certo que já o tinha feito em 2014, mas na época a Ucrânia praticamente não ofereceu resistência na Crimeia e logrou conter a revolta separatista/irredentista no Donbass, mantendo, na sua posse, a maior parte do território das províncias de Donetsk e de Lugansk. A intervenção russa foi, na altura, dissimulada. Quem avançou no terreno foram as forças separatistas pró-russas, que Moscovo obviamente controlava.

Na Crimeia, a maioria da população é etnicamente russa e no Donbass os russos étnicos constituem uma parte considerável da população, embora não sejam maioritários. No entanto, a esmagadora maioria da população tem como língua materna o russo. Tudo isto resulta da complexa História do Império Russo.

Recorde-se que o mesmo tinha uma superfície de 22 800 000 km² em 1866 (um ano antes da venda do Alasca e dos seus 1 723 000 km² de área aos Estados Unidos). A expansão ulterior, na Ásia Central, no Pacífico e nos territórios adjacentes ou mesmo sob a suserania do Império Chinês, permitiu-lhe voltar a anexar territórios e atingir assim, em 1914, uns impressionantes 21 799 825 km² de área, que quase compensaram a venda do território russo da América do Norte.

As derrotas na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) e na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) tiveram como consequência um grave retrocesso territorial e a própria queda do regime czarista.

Foi nessa época que a Rússia teve de desistir de integrar a Manchúria no império e perdeu mesmo territórios como a Finlândia, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Bessarábia, a Polónia russa (que integrava Varsóvia) e mesmo, por um breve período, uma parte significativa dos territórios que integram atualmente a Bielorrússia e a Ucrânia (recuperados e integrados na União Soviética, logo no início da década de 20 do século passado). Tudo isto significou uma perda territorial que superou os 2 000 000 km².

Após a Primeira Guerra Mundial, o Império Russo prosseguiu o seu percurso com uma nova designação e um regime de natureza diferente, mas de base territorial quase idêntica: a União Soviética. O triunfo dos soviéticos na Segunda Guerra Mundial e a recuperação territorial então realizada permitiram à União Soviética alcançar uma dimensão territorial de 22 400 000 km², ou seja, quase igualar a máxima extensão histórica do Império Russo.

Finalmente, cabe referir que a derrota soviética na Guerra Fria significou a desintegração da União Soviética (1991) e um grave retrocesso territorial para a Rússia, que ficou reduzida a um território de 17 100 000 km² (ainda assim, continua a ser o maior país do mundo). O facto de a Rússia ter substituído a União Soviética como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, condição que lhe outorga poder de veto, evidencia bem que, aos olhos do mundo, nunca existiram dúvidas de que a Federação Russa é a herdeira política da União Soviética e do Império Russo, que a antecederam.

Daniel Drezner resume bem a situação em que se encontra, atualmente, a Rússia: “a Rússia, sem a Ucrânia, é um país. A Rússia, com a Ucrânia, é um império”. Com a NATO junto das suas fronteiras e com o seu acesso aos “mares quentes” largamente condicionado por uma eventual expansão da NATO para a Ucrânia, Vladimir Putin decidiu envolver-se numa intervenção militar na Ucrânia, que tinha como objetivo essencial mudar o regime e obter a tutela política da Ucrânia.

O mundo mudou em resultado desta guerra, que acelerou tendências e o tempo da História. A globalização e as interdependências recuaram. Assiste-se ao regresso da política de blocos. A maior parte das potências está a rearmar-se e os conflitos étnicos ganharam uma nova centralidade. Os Estados Unidos, que sofreram uma recente e humilhante derrota no Afeganistão, estão a ser desafiados na Europa, no Pacífico e em boa parte da América Latina. O próprio sistema político americano está em desagregação, o que leva a que se questione o tempo que o país estará em condições de suportar, na Europa, um conflito cada vez mais dispendioso.

É razoável concluir que a intervenção militar russa falhou e que o líder russo se encontra numa encruzilhada. Não sei se Putin ainda tem como objetivo lograr o derrube de Zelensky, ou se apenas pretende obter compensações territoriais, nomeadamente no que diz respeito às áreas ucranianas já anexadas. Sei apenas que as derrotas militares provocaram, quase sempre, a queda de regimes e de governantes na velha Rússia. Putin não sobreviverá a uma derrota militar. É a minha convicção. Tem de ganhar, se quer sobreviver.

O que é que o futuro nos reserva? A Ucrânia negociará a paz em troca da cedência de territórios aos russos? O regime russo ruirá, se a guerra se prolongar ou se tentar aumentar a mobilização militar dos seus recursos humanos e económicos? A Rússia vencerá militarmente a Ucrânia? O exército russo colapsará na Ucrânia? A frente militar estabilizará e gerará uma situação de impasse político-militar semelhante à Frente Ocidental na Primeira Guerra Mundial? A China atacará Taiwan? Os Estados Unidos aceitarão, tal como na Segunda Guerra Mundial, combater, em simultâneo, mesmo que por procuração e por intermédio das potências atacadas, na Europa e no Pacífico? A guerra escalará em direção a uma confrontação nuclear?

Não sei responder. Não tenho as certezas dos analistas que habitam nas nossas televisões e nos nossos jornais. Sei apenas que poucos conseguiram antever, no seu tempo, a escala gigantesca dos holocaustos em que se transformaram as duas guerras mundiais do século XX. O passado mostra que poucas vezes se consegue prever o absurdo. Infelizmente, a História está repleta de factos e decisões monstruosamente ilógicas e irracionais.

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