(Vergílio Ferreira escreveu uma vez que no Carnaval as pessoas se desmascaram. Nos dias que correm, associo isso ao futebol. Só quem não vá regularmente a um estádio é que pode ficar espantando com o que sucedeu com o jogador do Porto. O futebol transformou-se numa batalha campal, muitas vezes entre adeptos do mesmo clube, onde vale tudo, incluindo ofensas explícitas e confrontos físicos. Há quem ache isto normal. Eu fico-me por achar deprimente. E não me conformo.)

Av.ª 5 de Outubro, meio da tarde. Umas criaturas enfiadas numa carrinha acham que podem incomodar toda e qualquer mulher nova que por eles passa a pé, atirando-lhe comentários de cariz sexual óbvio e de gosto mais do que duvidoso. Fazem isto repetidamente, parando ao meu lado sinal encarnado atrás de sinal encarnado. Não houve uma alma, com exclusão de mim própria, a explicar-lhes que aquilo está para além do que se pode aceitar e que, para estados de alma daqueles, na falta de melhor, consta que há uma certa categoria de filmes que podem dar uma ajuda.

Os ditos rapazolas, arvorados na sua masculinidade, ficaram entre o chocado e o estupefacto, não por admitirem estar a fazer algo de errado, mas, pasme-se, por eu ser mulher. A questão, a meu ver, prende-se mais com o facto de ter reagido isolada do que com o sexo com que nasci e escolhi manter, embora às ofensas de que sou alvo, justamente por causa do futebol, não seja alheia a minha condição de mulher.

Neste mesmo dia e ao mesmo tempo, oiço um coro de indignados com o que sucedeu em Guimarães e, dando razão, não consigo deixar de pensar que o pior racismo é o quotidiano, aquele que não é visível mas é sentido pelos visados. E, com tais movimentações, desde que não façam muito barulho, convivemos acriticamente. Sem qualquer reacção de facto mas com muitas mãos no peito e afirmações genéricas, porque o típico português só gosta de confrontos se estiver em grupo e também não está para se incomodar muito.

De facto, talvez não sejamos um país assumidamente racista mas somos, claramente, dos mais hipócritas. Desde que encontre eco nas redes sociais ou na comunicação social, qualquer causa é óptima se não implicar mais do que escrever umas linhas, de preferência sentados. Por via de regra, essas linhas são elas próprias um exercício de ódio e de extremismo porque o imediatismo das redes sociais nos modificou e uma sociedade movida a reality shows perde, muitas vezes (demasiadas vezes, diria) a noção de decência.

Não. O mal não está apenas nos que ofenderam Marega. O mal está em nós. Em todos nós, tão rápidos no teclado a manifestar indignações quanto ausentes na vida real. E, no limite, nem percebemos que estamos sozinhos numa multidão que se acotovela.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.