Os nossos dias são preenchidos em grande medida por tarefas repetitivas. Tomar duche, escolher a roupa, fazer a cama, preparar refeições, arejar a casa, aconchegar a roupa da cama a uma criança. Podemos discutir se as achamos aborrecidas ou desgastantes, mas teremos de admitir que estas tarefas, como tantas outras, dão sentido e saúde às nossas vidas. Destaco três tendências do nosso tempo que justificam a importância deste tema: primeira, o desprestígio associado às tarefas desenvolvidas no âmbito doméstico; segunda, a falta de responsabilidades rotineiras e trabalhosas na vida de crianças e jovens; e por último, a confiança na crescente automação enquanto forma de libertar o ser humano de tarefas consideradas menores.
Em 1919, escrevia Lenine: “este trabalho [afazeres da casa] é extraordinariamente mesquinho, nada contém que contribua de algum modo para o progresso da mulher” (Marx, Karl, Engels, Friedrich, Lenine, e Kollontai, Alexandra. “Contributos para a História do Feminismo”. Lisboa: Alêtheia, 2018).
Segundo o pensamento de Lenine, assegurar refeições e roupas, gerir o orçamento doméstico e cuidar da educação dos filhos, seriam claramente os afazeres “mais improdutivos, os mais bárbaros e os mais penosos” de que uma mulher poderia ser encarregue. Para os proponentes de tal visão, será comparativamente mais edificante e produtivo cuidar dos filhos de terceiros, permanecer oito ou dez horas numa cadeia de montagem, a servir atrás de um balcão ou imersa em trabalho administrativo.
A transformação da mentalidade moderna trouxe-nos a um ponto em que a sociedade verbaliza um desdém condescendente em relação às funções domésticas, enquanto reprime qualquer sinal de enfado em relação às rotinas laborais. Impõe-se uma pressão normativa para que cada um se mostre naturalmente dinâmico, empolgado e realizado no exigente e impessoal mercado laboral, como se esse fosse o seu espaço primordial de realização plena. É curioso que os desabafos de elevador à Segunda-feira de manhã e à Sexta-feira ao fim da tarde revelem geralmente o contrário.
Por sua vez, a família passa a uma função supletiva e qualquer sacrifício em favor do marido e dos filhos é visto como resquício de degradante submissão ou fraqueza de carácter. Mas por que havemos de considerar que as tarefas feitas em benefício daqueles que nos são mais próximos e que trazem harmonia ao nosso dia-a-dia são um fardo inaceitável? E quanto à tão frequente desaprovação pública, qual a necessidade de pôr em causa que as pessoas possam sentir satisfação na realização de tarefas domésticas rotineiras?
O jeito pessoal que se coloca numa acção, a paciência envolvida na produção de algo único, a necessidade de ajuda em algum momento e o sentido de realização ao completar a tarefa, tudo isto traz uma gratificação insubstituível que não se iguala às mais prestigiantes realizações. Parece-me significativo que as tarefas mais banais do nosso passado sejam aquelas que recordamos com mais nostalgia.
A desconsideração pelas tarefas aparentemente mais aborrecidas ou menores também tem impacto na rotina dos mais novos. Os pais focam-se numa corrida ávida pelo incremento intelectual dos seus filhos que se mantêm rodeados de estímulos didácticos durante todas as horas em que estão acordados. Tudo tem de ser épico. Ao mesmo tempo, assume-se que os deveres e as frustrações não devem fazer parte da equação e por isso não devemos exigir que uma criança volte a arrumar as coisas que desarruma, que escreva cópias para treinar a letra e corrigir os erros, que leia um livro até ao fim, ou que observe e ajude a montar um móvel novo.
Será que as próximas gerações terão capacidade de criar memórias únicas, feitas de tarefas banais e repetitivas? Ou ficarão frustradas à mínima desilusão, desejando que tudo apareça feito no imediato?
Progressos que tornam a nossa vida mais confortável e que rentabilizam o nosso tempo são, em geral, louváveis. Nomeadamente, na vida doméstica, os electrodomésticos transformaram radicalmente a vida das famílias e trouxeram maior velocidade, segurança e comodidade às tarefas mais essenciais e repetitivas de qualquer lar. Mas a eficiência não é um bem absoluto. Pode existir encanto em receber uma carta escrita à mão, em fazer um bolo sem recorrer a uma batedeira, em esperar que o café ferva numa cafeteira italiana em vez de o sacar de uma cápsula, em escolher o livro que levamos na mala em vez de levar centenas de livros em formato digital.
O encanto que podemos encontrar nessas experiências leva-nos finalmente à tendência de confiança na crescente automação como libertação do ser humano. A verdade é que a velocidade dos avanços tecnológicos não nos deixa muito tempo para pensar se será desejável que a inteligência artificial venha substituir as tarefas mais rotineiras e elementares nas nossas vidas. Na vida familiar, vemos como as facilidades de entretenimento rápido podem contribuir para atomizar os membros da família, criando experiências isoladas de entretenimento em realidades virtuais.
É irónico que a tecnologia nos liberte imenso tempo, mas que tenhamos cada vez menos tempo ou disponibilidade emocional para as pessoas que estão ao nosso lado. E é nesta desatenção às experiências cara a cara que reside o real perigo de desassociação da vida real, de confusão de papéis sociais e até de perda de aptidões comunicacionais em sociedade.
É desejável conquistar modos de vida mais eficientes. Porém, quando pensamos nas instâncias mais elementares de socialização, não devemos deixar que a nossa identidade sirva o mesmo objectivo de eficiência absoluta e que nos afoguemos em tarefas grandiosas. Pelo contrário, é precisamente graças à automação que nos podemos dar ao luxo de dedicar tempo às tarefas mais ineficientes, vagarosas e rotineiras, que podem perfeitamente ser consideradas como as mais valorosas.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.