Pois é. Aconteceu sem ninguém dar por isso, talvez por ainda persistirem dúvidas políticas. Com a aplicação dos Títulos III e IV do MiCA, assim que este regulamento seja aplicável (12 meses após a sua entrada em vigor, esperada para Março de 2023), já vamos poder usar euros em forma de token. Ora, tal como já discutimos aqui, o projecto do Euro Digital promovido pelo BCE tem exactamente este mesmo propósito. Será que ainda vai ser necessário?

Em boa verdade, o que impulsionou o MiCA foi a legislação sobre criptoactivos fungíveis, voláteis e oferecidos na forma de ICO (Initial Coin Offering). É que, ao contrário dos EUA, os criptoactivos na UE ainda não têm representação na lei dos serviços financeiros (MiFID II), pelo que, antes do MiCA ser aplicado, estes só podem ser considerados simples crowdsourcing sem qualquer protecção legal eficaz. O MiCA só vai regular os investimentos em token fungíveis lá para Agosto de 2024, mas o Título IV deste regulamento vai ser antecipado em 6 meses. Ora, é precisamente este Título que regula as criptofichas de moeda electrónica (ou e-money token, em inglês) as quais são um tipo de Stablecoin a usar exclusivamente para pagamentos no espaço SEPA, cumprindo exactamente a mesma função esperada do futuro Euro Digital! Senão vejamos.

Muitos dos pagamentos realizados actualmente recorrem a fornecedores de serviços financeiros para garantir (i) a identificação e certificação dos intervenientes e (ii) a transferência de valor através de contas de pagamento. É a lei que define se esses intervenientes têm, ou não, de ser identificados, mas quando se utilizam contas bancárias (ou equivalente) essa identificação é sempre inequívoca por definição. Já a certificação das transacções, depende da tecnologia de comunicação utilizada entre as partes.

Por exemplo, um cheque bancário é certificado com assinaturas manuais, os cartões bancários são certificados com seu número secreto (PIN), e quando o PSD II for aplicado como se espera, será o telefone celular a certificar os pagamentos de uma forma semelhante ao que já se faz com a chave móvel digital (em particular com a autenticação em dois passos). Já quando se utiliza o homebanking, a certificação tem lugar com um nome de utilizador, uma palavra-chave e uma validação complementar (e.g., mensagem SMS e/ou cartão matriz, entre outros).

Pois bem, com os euros em forma de token criptográfico permitidos pelo MiCA, vamos poder utilizar as nossas wallet com as Stablecoin permitidas por lei para todo o tipo de pagamentos. A conveniência para o consumidor será enorme e a simplificação dos processos de compensação do lado dos fornecedores de serviços não ficará atrás (pois essa é a natureza da Blockchain!). É até natural que diminuam extraordinariamente as taxas de serviço para os comerciantes, que, em última análise, são quem suporta a parte de leão dos custos de todo o sistema de pagamentos.

O MiCA estabelece que todas as entidades já licenciadas a gerir contas de pagamento poderão fornecer as novas Stablecoin, as quais ficam assim naturalmente ligadas ao sistema financeiro incumbente. Além disso, este novo meio de pagamento está ao alcance de todos, tenham ou não contas bancárias, pois basta instalar uma qualquer wallet que lide com chaves criptográficas. É de mestre.

Esta solução encontrada pelos legisladores da UE é interessante por manter intacta a infraestrutura actual de fornecedores de sistemas de pagamento, alterando apenas a forma como estes executam as transacções na sua relação com o resto do sistema financeiro. É uma solução suficientemente inovadora e disruptiva sem se tornar catastrófica. A partir do momento em que os euros tokenizados por instituições licenciadas começarem a circular, a conveniência (que é como quem diz, a lei do menor esforço, mais conhecida por preguiça) experimentada por consumidores e por fornecedores tratará o resto. É que, para além dos pagamentos, vamos poder inovar naturalmente as actividades de marketing de forma disruptiva, para além de abrir o caminho à automatização de transacções de maior complexidade sustentadas na transferência de valor das Blockchain. Vai ser uma revolução!

Muito se tem falado do Euro Digital, e também já aqui defendi as suas vantagens muito para além dos pagamentos no ponto venda. A questão é que este ainda está longe de ser implementado e ainda mais longe está a existência de uma regulamentação que altere o sistema financeiro para o acomodar. O MiCA veio mudar tudo isso e vai obrigar a repensar a estratégia de todas as entidades do sistema financeiro, para além de todas as outras que possam beneficiar da conveniência das wallet para inovar a sua proposta de valor aos seus consumidores. Sabendo que este tipo de serviços beneficia do passaporte europeu para os serviços financeiros, talvez seja importante não ficar de braços cruzados.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.