Na semana que passou, foi anunciada a aprovação, na Assembleia da República, do denominado “pacote de transparência”, do qual se espera uma mudança sem precedentes no que toca à respeitabilidade da atividade política e, claro, dos seus principais protagonistas.

Devo dizer que nunca percebi muito bem esta ideia de arrumar leis em “pacotes”, como se fossem bolachas ou batatas fritas. Parece-me pouco digno, já que as leis são (ou deviam ser) as mais lídimas manifestações da vontade soberana do povo. Também não se diz um “molho de leis”, porque toda a gente sabe que os molhos são de brócolos (que são ótimos para a saúde), assim como as sacas são de batatas (que estragam todas as dietas).

Mas, enfim, o problema deve ser meu e, lidas algumas notícias entusiásticas sobre os efeitos benéficos do tal pacote para a saúde da nossa democracia, decidi ir à página do Parlamento ver o que realmente tinha sido aprovado. Fiz a pesquisa e comecei a desempacotar.

1. A primeira lei que saiu do pacote dá pelo nome de decreto nº 306/XIII (aliás já publicado no Diário da República) e trata de um dos assuntos que mais tem preocupado os portugueses nos últimos tempos: os subsídios dos senhores deputados, conceito que inclui tanto as despesas de deslocação quanto as ajudas de custo. Lido o diploma na diagonal, percebe-se logo que os deputados – como qualquer português, aliás – têm direito a receber despesas de deslocação para irem trabalhar para a Assembleia, mas também para ficarem no seu círculo eleitoral.

Só não recebem se ficarem o dia todo fechados em casa, no sofá, a ver séries da Netflix. Ou melhor, até recebem – não despesas de deslocação, mas sim um subsídio de “apoio ao trabalho político”, que é “estabelecido por quantitativo global anual e processado mensalmente”.

O regime das ajudas de custo não é menos interessante. Por um lado, estas são abonadas aos deputados que vivem fora de Lisboa e de um conjunto de municípios circundantes. Por outro lado, os que vivem em Lisboa e nesses mesmos municípios contíguos também recebem ajudas de custo, embora reduzidas a um terço. Um deputado pode viver mesmo ali ao lado do Café de São Bento, que tem dos melhores bifes de Lisboa, e ainda assim receber ajudas de custo.

Além disso, as ajudas de custo são devidas “por cada dia de presença” em reuniões ocorridas na Assembleia “e mais dois dias por semana”. Aqui é que já não sei se percebi bem. Serão assim tão custosas as reuniões em que os deputados estão efetivamente presentes, que isso lhes dá um crédito para mais dois dias?

2. Impressionado com a transparência deste primeiro diploma, desempacotei a segunda lei – o decreto 312/XIII – com a mesma boa vontade com que um condenado sobe os degraus do cadafalso. Trata-se do regime do “lobby”, mas que o legislador, certamente por pudor, chama “representação legítima de interesses junto de entidades públicas”.

Assim à primeira vista, diria que nos devíamos antes preocupar com a representação “ilegítima” de interesses, mas não vem mal ao mundo em registar as entidades que se dedicam a esta atividade dentro da legalidade, conceder-lhes uns quantos direitos e sujeitá-las a um conjunto de deveres.

Difícil é compreender que as consequências para a violação desses deveres sejam praticamente nulas: a suspensão da entidade do registo – o que apenas a levará a voltar a fazer as coisas à moda antiga; e interdições de “acesso de pessoas singulares” às entidades públicas – o que se contorna facilmente, substituindo essas pessoas por outras.

3. A terceira lei – contida no decreto 312/XIII – é um regime novinho em folha de impedimentos, incompatibilidades e declarações de interesses, aplicável a políticos, altos funcionários e magistrados. Simplesmente, entre outras minudências, não existe ninguém disposto a pô-la em prática, depois de o presidente do Tribunal Constitucional ter dito aos deputados, preto no branco, para não contarem com os juízes do Palácio Ratton para esse efeito.

Alguém, por aí, tem um espacinho para esta novel Entidade da Transparência? Não hesitem em chegar-se à frente e, sobretudo, não desanimem com a perspetiva de se tornarem em “polícias de políticos”.

4. Para quem não for supersticioso, também a última das quatro leis do pacote até agora reveladas – o decreto 313/XIII – nos deve encher de esperança. Com efeito, trata-se da 13.ª alteração a um dos diplomas estruturantes do sistema: o Estatuto dos Deputados, publicado originalmente em 1993.

Com efeito, os deputados alteram o seu próprio Estatuto em 1995, 1998, duas vezes em 1999, 2001, 2003, 2005, duas vezes em 2006, 2007, 2009 e uma vez já em 2019. Ora, como diz o povo, à 13.ª é que é de vez…