A viragem de ano é um momento que convida à introspecção. Quando um país parece condenado a repetir padrões indesejáveis, é essencial pensar nos aspectos internos que ajudam a explicá-los, em lugar de lançar culpas às contingências externas, ao mundo que mudou, à oposição política, a governos antecessores ou até às intempéries climáticas.

O ano 2022 foi repleto das sobejamente conhecidas fragilidades que atrasam o progresso nacional, a saber, o conformismo face à excessiva governamentalização da sociedade, o monolitismo de sectores essenciais como a saúde, a educação e os transportes, a tolerância em relação ao compadrio e corrupção, perfeitamente exemplificados por alguns membros do Governo, e os profundos desequilíbrios demográficos que se agravam por motivos económicos, sociais e culturais.

Lembrar estes traços pode ajudar-nos a enfrentar os factos com que continuaremos a lidar no próximo ano. Entre eles, refiram-se os tiques absolutistas da actual maioria absoluta, as incontornáveis debilidades dos sectores da saúde e da educação; o crescente empobrecimento dos portugueses por incompetência prolongada do executivo e, finalmente, a reconfiguração demográfica de uma sociedade que teima em não se conseguir renovar.

Uma maioria absoluta paternalista e inimputável

No início de 2022, numa sociedade ainda meio inebriada pelos ditos méritos executivos na gestão pandémica, Costa conquistou o tão desejado reforço da confiança democrática através de uma surpreendente e confortável maioria absoluta. Mas se o primeiro-ministro se sentiu imediatamente confortável, o mesmo não se pode dizer da condição socioeconómica do país que se afasta a um ritmo vertiginoso de toda a Europa.

Em termos de estilo de governação, o primeiro-ministro que se comprometia a não “pisar o risco” e a reconciliar os portugueses com a ideia de maioria absoluta, apresenta agora atitudes absolutamente confrangedoras, de sobranceria em relação aos demais partidos e do mais básico paternalismo em relação aos cidadãos.

Claro que o primeiro-ministro é o mesmo de sempre, de perfil irascível e despótico, mas tem vindo a revelar-se mais desgastado e menos beneficiado pelo contexto. Depois de ter visto o seu prestígio catapultado durante as intermitências da pandemia e, num passado mais recente, de ter conseguido passar variados casos de corrupção e nepotismo pelos “pingos da chuva”, à boleia do contexto de guerra na Europa ou de minudências mediáticas, o único recurso que lhe resta é a bajulação das camadas mais empobrecidas por meio de “apoios extraordinários”.

A atribuição selectiva de uma esmola adicional de 240 euros aos mais carenciados, guardada estrategicamente para a véspera de Natal, é um perfeito exemplo desse paternalismo que menoriza os cidadãos em geral e ilude parte do mais previsível eleitorado do PS.

Se o Governo estivesse disposto a aliviar a drástica perda de poder de compra da generalidade dos portugueses, existiriam formas simples de o fazer, nomeadamente reduzindo a taxa de IVA em bens alimentares ou reduzindo a predatória carga fiscal aplicada aos combustíveis, que teria imediato impacto nas famílias e nas empresas.

Seriam medidas simples e menos eleitoralistas, mas ambas obrigariam o Governo a desapegar-se do dinheiro dos contribuintes, a devolver autonomia de gestão às famílias e a abdicar de rendas tão fundamentais às suas clientelas e ao financiamento de ineficiência e de maus negócios, como o exemplificado pela TAP.

Conforme ficou evidente no debate e votação do Orçamento do Estado, o Partido Socialista, recusando-se a acolher propostas estruturais apresentadas pela oposição, prefere preservar uma sociedade que se mantenha dividida por antagonismos classistas e por polarizações ideológicas.

A significativa tolerância dos portugueses em relação à profunda governamentalização da sociedade é uma característica que abre espaço para as inclinações menos virtuosas de uma maioria absoluta, pois quanto mais extenso for o intervencionismo e quanto mais recursos estiverem à disposição do Governo, maiores serão as oportunidades de corrupção, dentro da lei ou ao arrepio da lei.

Estes riscos são particularmente relevantes quando pensamos na fraca execução do Plano de Recuperação e Resiliência que poderá ser comprometido pela morosidade burocrática ou, por outro lado, pela tão frequente má afectação de recursos resultante de contratos de transparência duvidosa. Ou não fosse esta uma prática reiterada do actual Governo, como se constatou na atribuição de verbas do Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural a empresas do marido da ministra da Coesão Territorial, ou dos ajustes directos de Miguel Alves no seu passado autárquico em Caminha.

Por agora, podemos afirmar que o atraso na execução dos fundos compromete os potenciais benefícios para o país, já que, até ao momento, a Comissão Europeia disponibilizou a Portugal mais de três mil milhões de euros – de um total de 16,4 mil milhões que deverão ser executados até 2026 – e apenas mil milhões terão sido pagos aos beneficiários.

Será intolerável que tal inoperância se arraste no tempo, numa altura em que a realidade nacional (não a ficcionada pelo Governo) revela tantas carências e oportunidades de reforma e investimento, sobretudo nos domínios da saúde, da educação e da habitação.

O monolitismo dos serviços públicos

Por falta de apego à nação ou por falência programática, António Costa mostra-se pouco disposto a resolver os problemas estruturais do país que governa há sete anos. Restringidos a uma medíocre oferta de serviços de saúde e de educação, apenas os portugueses ligeiramente remediados conseguem pagar o preço adicional da celeridade, da dignidade e da eficiência.

Nem os cenários mais dantescos nos serviços de urgências e de cuidados intensivos, nem as sentenças de morte implícitas nas longas filas de espera, conseguem demover preconceitos ideológicos entre aqueles que não admitem a existência de concorrência de operadores e a possibilidade de cada utente escolher o seu prestador de serviço. Recordemo-nos do despudor com que os portugueses foram aconselhados a não recorrer aos hospitais, quando a Directora-Geral de Saúde recomendou que os portugueses não comessem bacalhau à Brás durante o Verão.

Encerramos o ano com a notícia de que a Direcção Executiva do SNS decidiu o funcionamento em rede das maternidades, entre Janeiro e Março, em função da escassa disponibilidade de especialistas de ginecologia e obstetrícia. Funcionamento “em rede” remete-nos quase para a visão de cidades futuristas, alvo de transição digital e de inteligente descentralização de competências. Porém, a medida não passa de uma manobra insensível que destrata as mulheres grávidas, impondo deslocações exageradas, riscos acrescidos para a vida de mães e de bebés e incómodo a toda a família.

Delega-se à grávida e à família, depois de rebentadas as águas, a missão de procurar uma maternidade aberta como quem pesquisa a farmácia de serviço – eventualmente a 100 quilómetros de casa, porque o momento é de alegria. Revelando falta de empatia e desconhecimento da realidade no terreno, a governação socialista decide normalizar o funcionamento aleatório das maternidades como se isso fosse uma estratégia aceitável e, imagine-se, passível de se prolongar no tempo. Este é um claro exemplo do que significa “navegar à vista” e hipotecar o futuro.

O Governo tem sido mestre em aplicar remédios, paliativos e remendos um pouco por toda a parte. Veja-se, por exemplo, como ao fim de anos de lamentáveis perdas em vidas humanas, habitações e hectares de floresta ardida, o país precisou que peritos australianos viessem concluir que, naturalmente, o aumento da eficácia e eficiência no combate aos incêndios deve passar pela aposta na qualificação, na melhoria da comunicação entre entidades e na prevenção.

A verdade é que muitos portugueses parecem flexíveis à sazonalidade de certos problemas e tendem a conformar-se com modelos medíocres que lhes são impostos, revelando até uma alarmante obediência cívica e moral, como vimos em alguns comportamentos quase distópicos espoletados durante o confinamento.

É essa obediência colectiva que também explica que a opinião pública nem sempre seja favorável à escolha particular de quem investe num projecto curricular fora da égide estatal, ou à expressão de soberania das famílias em caso de objecções de consciência. Uma parte significativa da população, seja por uma inata inclinação para o conformismo ou por falta de hábito de lidar com a autonomia de pensamento, não percebe nem aceita que alguém desafie o poder coercitivo ou que ouse avaliar a qualidade dos serviços essenciais que financia com os seus impostos.

Mas é por elementar instinto de protecção dos nossos que devemos ambicionar um sistema de ensino focado na qualidade, um modelo de prestação concorrencial e liberdade de consciência nas escolas. Acresce ainda o dever de resistir a imposições arbitrárias como as que interromperam abruptamente os processos de aprendizagem em 2020 e que penalizaram o desempenho escolar, em particular entre crianças e jovens mais carenciados.

Ainda o desafio demográfico

Destacam-se três factos inescapáveis no futuro próximo e que têm de estar bem presentes na consciência dos portugueses, mesmo que sejam negligenciados pelo Governo: a percentagem de idosos irá continuar a aumentar, agravando a pressão sobre a população activa e a despesa em serviços de saúde; a população jovem é diminuta e exige-se valorização e capacidade de fixação deste capital humano; o facilitismo no ensino e a ineficiência administrativa no sector da educação irão penalizar as próximas gerações de forma irreversível. Todos estes factos se relacionam com o fenómeno mais relevante do século e que o Governo tem tratado como nota de rodapé: a crise demográfica.

Seria indesculpável terminar esta breve antevisão de 2023 sem passar em vista alguns dados definitivos dos Censos 2021 que determinarão muito do que será o nosso destino colectivo. Em termos de população total, o país perdeu 2,1% de residentes entre 2011 e 2021. Quanto ao índice de envelhecimento, existiam 182 idosos (65 ou mais anos) para cada 100 jovens (entre os 0 e os 14 anos) e a idade média em Portugal situava-se nos 45,4 anos. Os agregados unipessoais registaram aumentos (totalizando 1 027 871 casos), bem como agregados com duas pessoas (1 382 996), enquanto os agregados com mais membros diminuíram face a 2011, o que pode ser reflexo de novos estilos de vida em meio urbano, mas também um desconcertante indício de solidão, sobretudo entre a população idosa.

Sem surpresa, a taxa de natalidade continua estagnada, sendo que existiam 1 131 926 casais, de direito e de facto, sem filhos. Ainda que as decisões reprodutivas dependam da conjugação de vontades particulares de homens e de mulheres que enfrentam transformações inéditas dos seus estilos de vida e das expectativas nas relações conjugais e familiares, espera-se, no mínimo, que as políticas públicas possam promover condições mais favoráveis à plena realização familiar. Algo que não será conseguido com medidas avulsas de cunho mais igualitarista do que natalista.

Aquilo que distingue a política demográfica do actual Governo não é tanto a incapacidade de incentivar um aumento da taxa de natalidade, pois esta é uma tendência inflexível em todo o Ocidente. Os traços mais distintivos são a indiferença perante a emigração da população jovem, a voracidade fiscal que dirige às famílias, sem margem para concessões, e o recurso à imigração numa tentativa de mascarar a realidade demográfica e de colmatar lacunas internas à pressa. Todos estes aspectos coincidem com a arte de governar para o dia seguinte e de transformar grandes fracassos em grandes feitos por meio de dotes políticos. Caberá a cada um começar a discernir o óbvio no próximo ano.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.