Há um novo Governo? Não é uma novidade. Em rigor, é uma notícia velha. Mas que podemos fazer? É a lei da vida e do país. Este não será necessariamente um mau Governo. Nem um bom. Só é triste porque este é um “não-Governo”. Nisso é evidente a sua originalidade. Há ministros. Muitos, embora um pouco menos do que no anterior e enfadonho Governo. O que é xaroposo é que os ministros designados pelo doutor António Costa obedecem à lógica da confiança política, ou seja, do “chefe”.

Há cargos inumeráveis de “confiança” e parque de estacionamento para todos os possíveis sucessores do doutor Costa. Todos dependentes, claro, do que a sua lealdade vale. Nas secretarias de Estado vão estar legiões de abençoados que aspiram chegar ao cimo da montanha, para estarem mais perto do Céu e do pudim dos eleitos. Estamos pois chegados, no meio de uma guerra na Europa, na correria da inflação, na destruição visível do SNS, com um Governo para se governar. Era preciso um Governo forte? Era. Em troca, temos um conto de fadas.

Há lógica? Há. Mas é a pior. Este Governo é um equilíbrio político de uma facção de Portugal e, dentro desta, de um partido. É demasiado? É. Porque é um condomínio privado de interesses reduzidos. É um executivo decorativo. Mostra que o doutor Costa gosta de se rodear dos seus fiéis do momento e deixa cair quem já não lhe serve como se atira um invólucro de bombom para o caixote do lixo. A única surpresa, por isso, é a saída do doutor Siza Vieira do Governo. E talvez mesmo o resmungo audível da doutora Alexandra Leitão, promovida agora à última fila da bancada do PS no Parlamento.

Há, claro, um momento de “stand-up comedy”: a promoção do doutor Fernando Medina a ministro das Finanças. Pense-se o que se quiser do doutor Teixeira dos Santos, do doutor Vítor Gaspar ou do doutor Mário Centeno, mas todos tinham escola nas finanças. O doutor Medina tem como medalha de mérito ter transformado Lisboa numa Disneylândia imobiliária, com o precioso auxílio do doutor Manuel Salgado e a bênção do doutor Costa. Um desvario pós-modernista. Não se imagina o que serão as suas intervenções no Eurogrupo. Mas prevê-se o que será no Terreiro do Paço: um fiel seguidor financeiro das instruções do doutor Costa. Será um ministro cosmético. Não nos admiremos.

Este é um Governo de papel de embrulho: o doutor Costa colocou os seus preferidos (a doutora Mariana Vieira da Silva e o doutor Medina) na “pole position” para a sua sucessão quando as águas se afastarem e ele puder caminhar, são e seguro, até um cargo em Bruxelas. Depois deixa o doutor Pedro Nuno Santos com os ossos duros de roer: a TAP e os comboios. E promove o doutor Duarte Cordeiro, para existir uma “reserva de regime”. E não há que esquecer o doutor Pedro Adão e Silva que, depois de leal conselheiro do doutor Costa por convicção da doutora Mariana, é convidado a tornar-se uma espécie de “ideólogo” do PS. A doutora Marta Temido fica também com reumatismo agudo: como aguentará ela um SNS a degradar-se a olhos vistos, sem o dinheiro que necessita para se revitalizar?

Este “não-Governo” do doutor Costa reservou-nos uma surpresa última: parte dos ministérios responsáveis pelo repartição do salvador PRR vão para a CGD. É um símbolo. O Governo julga que a CGD é a sua caixa forte do Tio Patinhas. Ali pode nadar em dinheiro e abundância. Não vai ao fundo, mesmo que o país esteja a naufragar como um moderno Titanic. Acompanhado de Donald, Huguinho, Zezinho e Luisinho e talvez Gastão, o doutor Costa pode oferecer rosas até chegarem os espinhos. São PRRs senhores, são PRRs!

É uma pena que o Ministério das Finanças não vá para lá. Porque o espaço era bom para arrendar para um hotel com vista para o Tejo. Poderia rentabilizar ter um quarto com uma placa: “Suite Troika” – aqui foi assinado o pedido de resgate à Troika. Ou outro: “Suite FMI” – aqui se pediram sucessivos pedidos de empréstimos ao FMI. Ajudaria as contas. Mas compreende-se: o doutor Medina deve estar longe de ministros pedinchas e só estar disponível para o telefone vermelho do doutor Costa.

O sempre sagaz Talleyrand, ministro dos Negócios Estrangeiros de Napoleão, disse-lhe um dia que se podiam fazer muitas coisas com as baionetas; menos sentar-se em cima delas. Esse é o problema dos governos maioritários: às vezes ficam a falar sozinhos, numa redoma. Sem saber o que é o país.

 

 

O poder dos Óscares

Os Óscares continuam a marcar o ritmo do cinema, mesmo quando a indústria sofre os ataques das plataformas e actores trocam a chapada virtual pela real. Mas, na sua tentativa de salvar o que parecia ser a crónica de um desastre anunciado, a Academia de Hollywood não só não mudou, como se acalmou e deu a vitória à opção menos arriscada.

Esta é a única maneira de explicar porque é que um filme como “CODA”, bem intencionado, agradável, mas longe da qualidade dos outros indicados, superou rivais como “West Side Story”, “Drive my car”, “Licorice Pizza” ou “Belfast”. E sobretudo “O Poder do Cão”, corajoso e moderno, com um olhar feminino e inovador para um género, o western, historicamente masculino. O Oscar repetiu a jogada de 2018, quando “Green Book” superou “Roma” na principal categoria, só que desta vez, para punir a Netflix, recusando dar-lhe o Óscar de melhor filme que ainda lhe falta, e premiando outra plataforma (Apple TV+).

Como moral inevitável, no final o streaming venceu, um passo lógico num ano marcado pelo ainda agonizante retorno aos cinemas após a pandemia. A democracia tende sempre para soluções conservadoras. A ditadura da maioria e um sistema de votação que privilegia o consenso premiaram a sensibilidade de “CODA”, numa vitória esmagadora sobre “O Poder do Cão”, que passou de favorito a grande perdedor.

Era uma guerra de guerrilha. Entre dois mundos, onde a Netflix jogava através das regras de Hollywood. Claro que a arte dos Óscares está mais determinada pela idade de ouro do cinema e não pera sua era digital. A Netflix quer pertencer ao clube. No fundo quer ser levada a sério no sistema convencional do cinema. As apostas são altas e os streamers, mesmo quando voltados para os subscritores, estão também focados noutra coisa: aliciar os principais realizadores e actores.

Ao mesmo tempo a Academia olhava para o seu próprio futuro – o ano passado apenas 10,4 milhões de americanos viram a cerimónia, uma queda de 56% face ao ano anterior e um quarto da audiência em 2014. Para Hollywood esta é uma receita crucial. Os direitos de transmissão nas televisões americanas e globais vale mais de 100 milhões de dólares por ano. Modernizar é a palavra de ordem.

Há quem diga que trazer os streamers para a festa contribui para diminuir o encanto e a exclusividade. Porque o cinema é diferente. A especificidade do cinema de salas está a ser assim posto em causa, e isso tem também a ver com o descontentamento de produtores, realizadores e actores em verem filmes de grandes estúdios como a Warner e Disney serem lançados directamente nos seus canais de streaming, mesmo antes de nas salas. A experiência começou com a pandemia, mas não dá sinais de parar. E os prémios deste ano têm tudo a ver com esta guerrilha pelos espectadores.

 

 

Policial clássico

“O Último Caso de Trent” de E. C. Bentley foi descrito por Agatha Christie como “uma das três melhores histórias de detective já escritas” e é muitas vezes anunciado como um protótipo do romance policial da ‘Era de Ouro’. Apresenta-nos um detetive urbano e racional e localizado dentro do ambiente quase claustrofóbico, Philip Trent, e antecipa escritores clássicos dessa época e posteriores, como Agatha Christie e Dorothy Sayers. Antecede o conhecido padre Brown (de G. K. Chesterton, um admirador profundo de Bentley) que ainda utiliza a lógica e raciocínio dedutivo até certo ponto.

Não por acaso, “O Último Caso de Trent” abre com uma pergunta retórica um tanto enigmática. O narrador pergunta: “Entre o que interessa e o que parece importar como pode o mundo que nós conhecemos julgar acertadamente?” Enquanto, por um lado, o narrador questiona o significado maior da morte do milionário Sigsbee Manderson, além de seu efeito nos mercados monetários internacionais, essas palavras igualmente mostram a dificuldade de distinguir o que importa e não importa nas páginas a seguir.

O assassinato de Manderson é o mistério central do livro. O corpo do milionário é misteriosamente descoberto no terreno de sua casa de campo, morto por um único tiro no olho. Nenhuma arma do crime é encontrada mas, no entanto, o corpo apresenta sinais de luta, com arranhões e hematomas ao redor dos pulsos. Há também outras anomalias.

O relógio de bolso de Manderson é descoberto no bolso errado, faltam os seus dentes falsos e ele está estranhamente vestido com uma combinação de roupas diurnas e nocturnas. Esta é, claro, uma irregularidade de indumentária chocante de acordo com os servos de Manderson, que testemunham que ele se veste de forma elegante. Com a polícia incapaz de distinguir quaisquer suspeitos claros ou motivos para o ataque, o carismático artista e detective amador Phillip Trent é convocado para intervir, tendo recentemente resolvido um caso muito parecido, usando apenas os jornais para guiá-lo.

Como Sherlock Holmes, as técnicas de detecção de Trent são quase inteiramente centradas na observação. Logo no início do livro, o narrador comenta como o treino de Trent o ensinou a viver nos seus olhos, e essa confiança no poder da observação é potencialmente dramatizada durante a sua investigação do crime de Manderson.

A convicção de Trent acaba por levá-lo a acreditar no que ele percebe como uma hipótese satisfatória, que envolve o secretário britânico de Manderson, Marlowe. Ele deduz que este foi motivado por um caso secreto com a esposa do empresário, Mabel, para assim deliberadamente alterar as evidências e tornar a sua culpa quase imperceptível. O caso é ainda mais complicado pelas próprias afeições de Trent. Também ele se apaixonou por Mabel e temendo que ela possa ter sido cúmplice do assassinato, Trent apresenta o seu resumo do caso directamente a ela e não às autoridades, para que ela possa decidir se os factos devem ser revelados publicamente. No texto policial ‘clássico’, tradicionalmente, a soma dos acontecimentos pelo detetive provoca uma confissão do culpado, que inevitavelmente leva ao encerramento do caso e ao desenlace da narrativa.

No entanto, é aqui que o texto de Bentley começa a transgredir a convenção. O resumo de Trent actua como catalisador para a segunda metade do texto, que desconstrói a estrutura convencional estabelecida na primeira metade. Depois de um curto período viajando e convalescendo na Europa, Trent retorna à Inglaterra e mais uma vez se cruza com a viúva Mabel Manderson. Depois de alguns breves encontros, Mabel contesta a versão de Trent sobre os acontecimentos em torno do caso, assegurando-lhe que ele fez um julgamento incorreto sobre seu relacionamento com o secretário Marlowe.

No capítulo final do texto, Trent encontra o seu amigo, e tio de Mabel Manderson, Cupples para um jantar de comemoração, durante o qual Trent pondera sobre a sua investigação sem objetivo. Bentley apropriadamente introduz uma reviravolta final, imprevisível. Enquanto revisita o caso com Trent durante o jantar, Cupples de repente revela que na verdade foi ele quem matou Manderson num acto de legítima defesa quando o milionário, enlouquecido, o atacou no terreno do campo de golfe. Afinal a morte de Manderson não tem nenhuma relação com a sequência de eventos que Trent deduziu. Porque a morte de Manderson é arbitrária e caótica. E é todo este labirinto que torna este livro inestimável.

E. C. Bentley, “O Último Caso de Trent”, Livros do Brasil, 237 páginas, 2022

 

 

Sons do passado

Os Jethro Tull são uma lenda viva. Daí que o seu álbum “The Zealot Gene” (CD Inside Out 2022), mais do que uma inevitabilidade, é um encontro com o passado, mas com os olhos postos no futuro. Talvez não se encontre aqui a densidade de “Songs from the Wood” ou “Aqualung”, álbuns que fizeram a história de Ian Anderson e do seu grupo de fiéis adjuntos. Aqui há muitos ingredientes sobre o nosso tempo, de Donald Trump à Bíblia.

É o primeiro álbum de novos temas desde 2003 (“The Christmas Album”). existiram claro ouros discos do grupo, desde álbuns ao vivo a reedições, mas faltava sangue novo. E existiram discos a solo de Ian Anderson, tal como “Thick as a Brick 2”, que expandia o clásico álbum do grupo de 1972.

Este “The Zealot Gene” tem 12 temas que falam de diferentes aspectos da vida humana. Há um tema de fundo, o que não é algo estranho: a Bíblia. Cada título das canções é seguido de uma referência a versos específicos da Bíblia. Muitas vezes a ideia é trazer as palavras de Anderson para a nossa mente.

O tema que dá título ao álbum tem a ver com Donald Trump e é sobre a sua postura populista com “apelo negro”, “Mrs Tibbets” fala-nos da destruição e do 9 de Setembro num contexto desconfortável (o tema é dedicado à esposa de Paul Tibbets, o militar que pilotou o avião que largou a bomba atómica sobre Hiroshima, o “Enola Gay”). Menos catastrófica é a visão de jovens raparigas, embriagadas, em “Sad City Girls”. Mas Andeson continua a ser um romântico e isso é visível em temas como “Three Loves, Three” ou “Shoshana Sleeping”.

A música é ligeira, mas brilhante. Facilmente reconhece-se o som dos Jethro Tull, onde a flauta se cruza com a voz frágil de Anderson. É um disco sobre o mundo radical e politicamente carregado de populismo destes dias. “The Zealote Gene” fala-nos do mundo que vivemos desde 1945, entre as bombas de Hiroxima e Nagasáki, e onde se podem ver paralelismos com a destruição de Sodoma e Gomorra. É um disco poderoso que nos obriga a pensar sobre a história e os seus ciclos.

 

 

Dá-me lume?

Vivemos tempos de isqueiros, mas é sempre um prazer recordarmos outras formas de acender o fogo. É o caso das caixas de fósforos, muitas vezes belos exemplares como este feito para a Casa Havaneza e para os seus fiéis clientes há muitos anos.