A aprovação, na Assembleia da República, dos projectos-lei sobre a descriminalização da eutanásia significa mais uma tomada de posição liberal de Portugal.

Depois de já ter sido descriminalizada a interrupção voluntária da gravidez, do consumo de estupefacientes (mas não do seu tráfico) e a prática da prostituição (mas não do lenocínio), de se ter consagrado o casamento entre pessoas do mesmo sexo, acabado com a discriminação negativa no acesso à adopção por esses casais e se ter permitido a mudança de género a partir dos 16 anos (honrando a vontade das pessoas transgénero), Portugal torna-se num dos países mais respeitadores dos direitos individuais, à escala global, no pólo oposto a países conservadores como a Arábia Saudita, onde tudo isso é proibido.

Na sequência do pioneirismo na abolição gradual da escravatura (a partir de 1570) e da pena de morte (a partir de 1852), Portugal mostra, mais uma vez, que alia a sua tradição católica a uma cultura humanista liberal. Nesse sentido, e apesar das críticas que alguns fizeram à aprovação da lei, estou convicto de que esta reflecte o sentimento maioritário dos portugueses.

Mais, quer no caso do aborto, quer no caso do consumo de drogas, as leis tiveram os efeitos pretendidos: menos droga (heroína, cocaína e infectados com HIV) e menos abortos.

Curioso foi verificar, quer no debate parlamentar, quer na sociedade civil, a dificuldade que os ditos liberais demonstraram para se posicionar, de forma coerente, relativamente à descriminalização da eutanásia.

A verdade é que, em Portugal, a esmagadora maioria dos que se dizem liberais não o são de verdade. Dada a grande sobreposição que existe entre as classes altas e o conservadorismo católico, quase não existem verdadeiros liberais por cá. O que temos são os “liberais na economia, conservadores nos costumes”, que querem beneficiar do livre mercado e de impostos baixos para os seus negócios, mas impor os seus valores conservadores ao Estado.

Com já escrevi aqui, essa posição é contraditória, uma vez que o mercado livre é um promotor de constante mudança cultural e de destruição do statu quo: o mercado facilmente cria negócios de mudança de sexo, de eutanásia ou de abortos, fazendo o encontro entre a procura e a oferta, como se vê em muitos países liberais. Mais, defender que um indivíduo deve ser respeitado nas suas decisões de produção, investimento e consumo, sem interferência do Estado e, depois, querer que o Estado interfira nas tomadas de posição do indivíduo face ao seu corpo, é um paradoxo insanável.

Aliás, não há liberalismo sem liberdade do corpo. Essa é a esfera primeira de liberdade: cada indivíduo, e só ele, decide o que fazer com o seu corpo. Desde que adulto e mentalmente capaz, e desde que não impeça a liberdade dos outros corpos, segundo o liberalismo, o corpo é o nosso terreno sagrado.

Assim, se uma mulher estiver no início de uma gravidez e quiser interrompê-la, só ela o poderá decidir e ninguém pode obrigar a que o seu corpo continue o processo. Igualmente, se alguém precisar de ajuda para morrer, tem o direito de a pedir, sem que um outro que aceite prestar essa ajuda seja penalizado. Também quem quiser mudar de sexo, tem todo o direito. Para além de casar com quem quiser, em mútuo consentimento.

Mais superficialmente, todos devíamos ter o direito a vestir o que nos apeteça (mesmo que fosse nada ou uma burka), a pentearmo-nos como nos aprouver ou a lermos os livros que quisermos. Infelizmente, a cultura liberal é muito recente, e são ainda maioritários os países onde os valores castradores e puritanos imperam.

As leis que temos nestes assuntos são bem ponderadas, protegendo a liberdade de decisão de possíveis desvios e más interpretações, porque obrigam à tomada de consciência dos benefícios, dos custos e das consequências dessas decisões, quer para o indivíduo, quer para a sociedade.

Assim, há que nunca esquecer esta regra de ouro: se querem defender o liberalismo, comecem por deixar o corpo dos outros em paz.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.