Durante o passado mês de março, o lixo produzido pelos habitantes de Paris acumulou-se nas ruas. Os cantoneiros estiveram em greve durante 23 dias para protestar contra as mudanças que o presidente Macron quer introduzir na lei das reformas. No pico da paralisação, dez mil toneladas de lixo distribuíam-se expectantes pelos passeios. O artista francês Bisk divertiu-se a reorganizar e decorar amontoados de lixo para lhes dar a aparência de monstros, olhos esbugalhados e boca devorante. Foi ordenada a requisição de cantoneiros porque, como os hospitais, a recolha do lixo não pode simplesmente parar.

Como escreveu António Guerreiro no “Público” a 24 de março, a grande arma destes grevistas, além de logística e sanitária, “é também uma arma de desocultação, na medida que dá a ver o que devia permanecer invisível”. Os monstros de lixo das ruas de Paris, desocultados, dão a ver a problemática materialidade do nosso modo de vida. Temos ali – tal como nos aterros sanitários – um espelho.

Muitos cientistas propõem usar a palavra Antropoceno para designar a época geológica em que nos encontramos. Isto porque a marca humana sobre o planeta é hoje tão vasta e intensa que rivaliza com as grandes forças da natureza em termos de impacto sobre o sistema terrestre. Além da concentração de gases com efeito de estufa na atmosfera, lançámos para os ecossistemas uma série de substâncias novas – químicos, pesticidas, plásticos. A abrasão dos pneus na estrada, a lavagem da roupa, a descamação da tinta, a ação dos raios ultravioleta sobre os plásticos – tudo isto liberta microplásticos, que viajam para todo o lado pela água e pelo ar.

Já foram encontrados microplásticos nas neves alpinas. Fazem parte das nossas dietas. Até na órbita terrestre se acumulam detritos de satélites – esses que fazem funcionar a nossa Internet cada vez mais rápida – aumentando, por reflexão, a luminosidade do céu noturno. No documentário “Examined Life” (2008), o filósofo Slavoj Žižek passeia num depósito de lixo urbano e declara: «É aqui que devemos começar a sentir-nos em casa».

Colonialismo do lixo

Temos uma casa cheia de lixo. No entanto, a sua distribuição é desigual. Globalmente, migra de norte para sul e do centro para a periferia.

Na Europa, segundo a Agência Europeia do Ambiente, um terço do plástico destinado a reciclagem é exportado para fora das fronteiras comuns. Essa migração dura há décadas, porque reciclar é caro (devido aos custos de energia e mão de obra), e a matéria virgem, em geral, é abundante e barata. A Ásia é o principal recetor destes resíduos, e uma das razões prende-se com a sua intensa exportação de bens para o Norte, atividade que requer contentores, contentores esses que, em vez de chegarem vazios, trazem cargas do tal plástico usado, o que é vantajoso para as transportadoras e para os remetentes.

Por outro lado, é nestas geografias que se encontra muita da indústria mundial de plástico. Até 2018, a China recebia 45% dos resíduos plásticos mundiais; nesse ano, impôs fortes restrições à importação, originando o desvio de parte desse material para países como a Tailândia, Índia, Indonésia e Malásia, onde num curto espaço de tempo surgiram diversas unidades de reciclagem ilegais e poluentes.

O problema da abundância e da mediocridade dos resíduos plásticos dos países ricos foi deslocalizado para o sul do Sul global. Em contexto de legislação e fiscalização incipientes, é fácil montar um processo de reciclagem desleixado, recorrendo a mão de obra barata e queimando ou abandonando o material que não interessa. Note-se que esses plásticos têm muitas vezes um valor negativo, ou seja, o recetor é pago para ficar com eles. Isto é um efeito perverso de medidas como os esquemas de recolha de embalagens financiados pelos produtores ao abrigo da Responsabilidade Alargada do Produtor: a quantidade de material recolhido pode exceder a capacidade recicladora do país, e as taxas devidas pelos produtores permitem financiar a reciclagem no estrangeiro.

Recentemente vieram a público vários relatórios (Agência Europeia do Ambiente, Changing Markets Foundation, Zero Waste Europe) sobre os movimentos de resíduos têxteis em direção ao Sul global. Cada consumidor compra hoje 60% mais roupa do que há apenas 15 anos, sendo que a usa 36% menos. Esta explosão global da produção e do consumo alimentou-se de uma só matéria-prima, o poliéster, que compõe mais de 60% do vestuário contemporâneo e que nada mais é do que plástico – ou seja, crude e gás natural, os recursos fósseis que alimentam a nossa economia.

Diz-se agora que “os têxteis são o novo plástico” por causa da ubiquidade do poliéster e porque, tal como aconteceu para as embalagens e outros bens de consumo massificado, começamos a dar-nos conta dos problemas gerados pelo seu descarte em larga escala. A reciclagem de fibra para fibra praticamente não existe; por razões técnicas e económicas, o têxtil usado recicla-se em enchimentos, ou isolamentos para construção, e a fibra dita reciclada tem na sua origem sobretudo garrafas PET.

Muito vestuário usado viaja da Europa para África para reutilização; mas se não houver uma prévia triagem que garanta que a roupa exportada tem viabilidade comercial naqueles destinos, o que acontece é, mais uma vez, a deslocalização de futuros resíduos para países que não têm nem as instituições nem as infraestruturas para os tratar. É assim que lixeiras e rios do Gana e do Quénia se enchem do poliéster que já não nos apetece.

A União Europeia (UE) prepara para junho uma atualização da Diretiva-Quadro de Resíduos que vai alargar o princípio da Responsabilidade Alargada do Produtor (RAP) aos produtos têxteis. A RAP é um princípio valioso, mas está subaproveitado. Não deveria tratar-se apenas de obrigar os produtores a financiar a recolha seletiva e o encaminhamento para reutilização e reciclagem. Deveria tratar-se de modelar a qualidade e a quantidade do que é produzido, e de envolver os países para onde sabemos que o lixo viaja no desenho do esquema e nas transferências financeiras que ele envolve.

Abraçar o lixo, ou o desafio dos biorresíduos

Desfeita a ilusão de que o lixo desaparece quando o deitamos fora, o que nos cabe fazer? Reduzir a sua produção. Dito de outro modo: abraçar o lixo; adotá-lo. É o que acontece quando usamos velhas portas para fazer prateleiras, quando uma empresa expede mercadoria em embalagens que antes haviam embalado outras coisas, quando um grupo de voluntários se junta para redistribuir as sobras de restaurantes, quando compramos roupa em segunda mão ou adaptamos a que já temos no armário; acima de tudo, é o que acontece quando guardamos as nossas cascas, restos de comida e afins num recipiente separado para depois os fermentar e devolver à terra.

Não cessa de me deslumbrar a forma como as várias peças do puzzle se encaixam: 40% do lixo que produzimos é orgânico, e estamos a depositá-lo em aterro e a incinerá-lo; a presença de matéria orgânica no solo é fundamental para a vida microbiana, retenção de água e nutrição das plantas, além de constituir um sumidouro de carbono; o solo português, especialmente a sul, é pobre em matéria orgânica; usamos fertilizantes artificiais para nutrir as plantas, mas a sua aplicação acarreta impactos ambientais graves, sobretudo por via da contaminação das águas – o argumento pela devolução massiva da matéria orgânica à terra é luminoso e incontestável.

A recolha seletiva de biorresíduos para posterior biodigestão e compostagem é o grande desafio da gestão de resíduos em Portugal para os próximos anos. A UE pede-nos para a 1 de janeiro de 2024 termos este fluxo a funcionar em todo o país. Segundo um estudo de 2020 da Zero Waste Europe, Portugal captava por via seletiva apenas 2% dos biorresíduos urbanos com potencial de captação. O que quer dizer que, para realizar esse potencial, o caminho é longo.

Sabemos que as unidades de tratamento terão de se adaptar e crescer para receber todos os anos o milhão de toneladas extra de biorresíduos considerados captáveis. Estes resíduos, húmidos e pesados, não viajam bem, pelo que (tal como a Estratégia para os Biorresíduos prevê) é expectável que o tratamento seja feito de forma descentralizada, em unidades de digestão e compostagem de pequena ou média dimensão.

A Áustria, que leva décadas de recolha seletiva de biorresíduos urbanos e é nessa matéria o indiscutível campeão europeu, desenvolveu um modelo digno de análise, cujas especificidades são a descentralização e o envolvimento dos agricultores.

Fora das grandes cidades (servidas por centros de compostagem industriais) vigora o modelo do tratamento em pequena escala, gerido por agricultores e em sinergia com a própria produção agrícola. O país (8,9 milhões de habitantes) dispõe de cerca de 350 centros de compostagem deste género. Em municípios maiores, o processo passa por encaminhar os resíduos para um centro de receção, onde há lugar a um pré-tratamento, sendo o material distribuído em seguida por diferentes explorações agrícolas; em municípios pequenos, os agricultores recolhem diretamente os resíduos nas habitações.

Compostar na quinta faz sentido, porque os resíduos da própria exploração podem ser incorporados no processo, para benefício deste, e porque o composto resultante tem aplicação direta in situ, poupando-se os impactos do transporte; além disso, a prestação destes serviços aos municípios constitui uma fonte de receitas adicional para os agricultores. Seria interessante equacionar a aplicação deste modelo nas regiões menos densamente povoadas de Portugal. Na mesma lógica, faz sentido promover a compostagem comunitária nas cidades – evitando o transporte dos resíduos e aliviando a pressão sobre os sistemas de tratamento industrial.

Lidar com o fluxo constante e massivo dos restos da nossa existência coloca enormes desafios (técnicos, legais, culturais). Não é banal. Mas atrevo-me a resumir que, como para quase tudo, a abordagem requer reconhecimento e carinho. O lixo precisa de amigos.

Andreia Barbosa assina este texto no âmbito da parceria entre o Jornal Económico e a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), na qualidade de autora de “O Lixo em Portugal”, editado pela FFMS.