Tenho 30 anos – um facto genericamente indigno de nota, mas relevante para o ato de contrição que se segue. Ter 30 anos nos dias que correm significa duas coisas. Significa que vários amigos meus e eu próprio temos filhos pequenos. E significa que acompanhámos a série “Dragon Ball” durante os anos 90, no Buéréré de uma Ana Malhoa pré-turbinada.

Isto para confessar que, há tempos, dominado por um irresistível impulso revivalista, comprei um babygrow de Son Goku ao meu filho e cedi à tentação de partilhar o momento nas redes sociais. A avaliar pelo meu Instagram, o sharenting – a partilha, pelos pais, de conteúdos relativos aos filhos nas redes sociais – é prática disseminada. Ele é bebés ao virar de cada story: ora é a Madalena a dormir, ora é o João na piscina, ora é o Tomás a cuspir a sopa. Fosse Portugal a minha conta de Instagram e o inverno demográfico nem seria assunto.

Arrependido da minha decisão (e removida a fotografia), autoimpus a reflexão como penitência: o que explicará que os pais exponham os seus filhos regularmente nas redes sociais, em perfis abertos ao público ou, pelo menos, a um número significativo de pessoas que não são próximas ao ponto de conhecerem pessoalmente os catraios?

Em alguns casos, o “superior interesse da criança” justifica claramente a publicação das imagens. Exemplo: a onda de solidariedade gerada nas redes sociais em torno da bebé Matilde. Na maioria das situações, porém, a publicação não satisfaz qualquer interesse do menor, mas apenas a ânsia dos pais na partilha. Uma ânsia decerto bem-intencionada, movida a doses expressivas de amor e embevecimento (e também muitos likes).

Mas uma ânsia que, se irrefletida e irrefreada, fará com que os miúdos venham a ter uma pormenorizada identidade digital antes sequer de terem a maturidade e o discernimento suficientes para compreender o alcance dessa exposição e nela consentir. Apesar de miúdos, não deixam, como os graúdos, de ser titulares do direito à imagem e do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada. Além de haver sempre a hipótese de virem a desenvolver um sentido de privacidade minimamente robusto e de não quererem que se saiba urbi et orbi o que comeram ao pequeno-almoço.

Se isto não basta, convido-vos a visitar um recanto obscuro do Instagram, fazendo uma busca pelos hashtags #kidsrp ou #childrp (“rp” é a abreviatura de roleplay, que pode ser traduzido por “interpretação de papéis” ou “encenação”). O que se descobre é arrepiante: contas de utilizadores que republicam fotografias de crianças, encenando-lhes uma outra identidade e, em alguns casos, fazendo-se passar por pais das mesmas. O que só é possível porque as fotografias foram parar à rede, muitas vezes pela mão dos verdadeiros pais.

À falta, no nosso ordenamento jurídico, de um regime específico para a limitação ao exercício do direito à imagem e à privacidade dos menores, pode a própria tecnologia ajudar a apurar o sentido de ponderação dos utilizadores. Não seria uma solução inédita. O Instagram lançou recentemente um conjunto de ferramentas de combate ao bullying, entre as quais o Rethink – um moderador de comentários com inteligência artificial que, ao detetar a utilização de expressões indiciadoras de bullying, pergunta ao autor do comentário se quer mesmo publicá-lo. Trata-se, no fundo, de um instigador de ponderação, que obriga o utilizador a pensar duas vezes.

É paternalismo tecnológico? É. Mas talvez não fosse má ideia ser-se paternalista com os pais da minha geração e perguntar-nos: quer mesmo publicar esta imagem do seu filho?