“O navio chegou à costa”. Foi com estas palavras que a presidente da Conferência Intergovernamental da ONU sobre a Diversidade Marinha de Áreas além da Jurisdição Nacional, Rena Lee, anunciou que se chegara a acordo sobre a governança global do alto Mar. Nesta reta final, foram necessários quinze dias para discussão multilateral e uma negociação para fixação dos termos do acordo de 35 horas. Todo o processo decorreu na sede das Nações Unidas.
Este acordo histórico foi negociado durante cerca de duas décadas e envolveu a auscultação da sociedade civil, de organizações não governamentais e das instituições académicas e comunidade científica. Desde 2004 que este processo lento de negociação e construção de um acordo para o Alto Mar, i.e. a parte do oceano que fica fora das jurisdições nacionais, vinha a ter lugar. De forma discreta, a diplomacia multilateral global tentava gizar um acordo que comprometesse os Estados-membro das Nações Unidas a proteger, também em alto mar, a biodiversidade marinha.
Desde a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, finalizada em 1982, que não existia um tratado com uma dimensão idêntica. É, também, relevante o facto de este acordo tratar de uma área que foi deixada de fora na Convenção de 1982. Refiro-me aos recursos genéticos marinhos. Assim, o tratado, que deixa algumas questões práticas ainda em aberto, prevê que sejam providos recursos para proteger 30% do oceano, garantindo o acesso e uso de recursos genéticos marinhos.
Este mesmo acordo versa estritamente sobre uma parte do oceano considerada Património da Humanidade e prevê que este seja protegido para a sobrevivência da fauna e flora marinhas. Este tratado é essencial para atingir os objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e do Quadro de Biodiversidade Global, acordada em Montreal no final do ano passado.
Apesar de constituir uma enorme vitória da diplomacia multilateral e do próprio sistema das Nações Unidas, que conseguiu manter em agenda este tema delicado, mesmo em tempos adversos, ainda faltam alguns passos para a sua concretização plena.
O primeiro passo será a ratificação do tratado por parte de 60 países para que este entre em ação. Outro processo não menos importante é a operacionalização do Tratado, a distribuição de responsabilidades para a disponibilização de recursos e como será feita a vigilância sobre a observância do mesmo.
O Mar é global
Embora no que concerne o mar seja internacionalmente aceite que a diplomacia multilateral tem sido um veículo essencial para a sua proteção, o oceano ainda não obteve a devida atenção e relevância. Assim se justifica que a criação do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14 seja devida à intervenção persistente e mobilizadora de microestados insulares que dependem de um oceano saudável para sobreviver.
Esta situação poderá justificar todos os obstáculos que o processo negocial, iniciado em 2004, encontrou, apesar de se considerar essencial ir para além da regulamentação dos recursos minerais do Alto Mar, já garantidos pela Convenção de 1982. Também poderá explicar por que razão, naturalmente, o oceano não foi colocado como um dos painéis intergovernamentais relativo às alterações climáticas nas Nações Unidas.
De facto, a consciência das sociedades civis internacionais sobre a importância da preservação do mar que tem absorvido boa parte do aumento da temperatura atmosférica, por exemplo, permitiu que este elemento essencial para a sobrevivência do planeta seja, por vezes negligenciado. Se é verdade que os acordos negociados internacionalmente e, mais ainda, a nível global não são perfeitos, é também correto vê-los como passos determinantes para a conservação do mar ou até para o retrocesso de processos de perda de biodiversidade em curso.
Para se chegar a um acordo desta envergadura, para além de persistência, é necessário ultrapassar obstáculos e posições irredutíveis e procurar equilíbrios. A sobre-exploração dos recursos oceânicos que tem sido levada a cabo pelos países mais desenvolvidos foi um dos argumentos evocados pelos países menos desenvolvidos para reforçar certos aspetos da proteção genética do oceano.
Uma das questões mais complexas foi ultrapassar o clima de desconfiança dos países menos industrializados relativamente aos países mais industrializados para um compromisso global. Outras dificuldades surgirão, ainda, nestes caminhos, essencialmente devido à entrada em ação do tratado e o formato como esta governança do mar pode ser tecnicamente assegurada, garantindo equilíbrio nas decisões e na afetação de recursos.
Contudo, as respostas globais serão as únicas capazes de responder a problemas com a amplitude com que nos debatemos. Todo o quadro de urgência climática, também plasmada na crise do Oceano, só pode obter reações adequadas, se forem concertadas no campo multilateral e abraçadas pela maioria dos estados.
Cada vez mais, os problemas com que a humanidade se depara têm causas globais, não obstante as suas manifestações locais. Os acordos relativos à proteção do oceano têm esse cunho e deixam entreaberta alguma esperança, se não para a sua solução, pelo menos para iniciar um processo de contenção.
Os riscos de desglobalizar
Um dos maiores ensinamentos que este tratado nos traz e outros anteriores, relativos ao oceano, é que é possível concertar posições, mesmo em tempos de competição geopolítica. Embora o conflito da Ucrânia possa ter dificultado algumas questões, não pôs em causa tratados anteriores (como o relativo ao Ártico, por exemplo), nem impossibilitou estar de acordo sobre o Alto Mar. Isto significa que, ao nível nacional, os vários países entenderam que esta urgência é real e que as consequências de um oceano enfermo serão devastadoras e gerais.
Nesse sentido, a globalização dos desafios e problemas contribui para manter a diplomacia multilateral no centro das relações entre os Estados que buscam solução para os mesmos. A perceção de um perigo, enquanto ameaça global ajuda a perceber como o mundo é interdependente nas formas de enfrentar a mesma.
Estas interdependências afirmam-se ainda noutras esferas. As nossas economias são interdependentes e fenómenos como a comunicação estão internacionalizados e mesmo globalizados. Mais, o incremento dos fluxos migratórios é também um testemunho de como todos estamos mais perto e com maior mobilidade. Depois de décadas a caminhar para um mundo mais globalizado e integrado, será penoso recorrer ao processo contrário.
Constitui um esforçado exercício político encontrar resposta para os desafios atuais fora de um quadro multilateral e, muitas vezes, multilateral ao nível global. Nenhum país está, neste momento, imune ao que se passa noutro país.
Vejamos as consequências que a guerra na Ucrânia trouxe para o mundo inteiro, por exemplo, em termos energéticos e de fornecimento de cereais (para mencionar alguns). Observemos como a desarticulação de estados como a Líbia ou a guerra civil na Síria, portanto, noutro continente, trouxeram vagas de refugiados que tentam escapar à guerra e à fome. Olhemos como a fragilidade e pobreza dos estados da América Central levam pessoas a emigrar em condições inimagináveis.
A ideia de globalidade é fundamental para resolver os nossos problemas que também são os dos outros. Se fomos capazes de enfrentar um problema global como o oceano, deve valer a pena tentar com outras questões com que nos deparamos, como as migrações, a escassez de recursos ou a pobreza. É esta ideia de casa comum que poderá evitar uma degradação rápida do planeta e, também, o reforço pelo respeito pela natureza e pela vida humana.
Portugal, o multilateralismo e a globalização
No caso português, a sua orientação diplomática foi e é universal. A sua história de conexão com povos e territórios de diversos continentes faz com que as relações bilaterais de Portugal sejam extensas e a participação em fóruns multilaterais seja assinalável.
No caso do Oceano, Portugal distinguiu-se, desde logo, por ter contribuído para introduzir o debate a uma esfera internacional na organização da Expo 98, sob o lema dos oceanos enquanto herança para o futuro. Nessa perspetiva do mar, víamos a diversidade do ecossistema oceano e fazia-se confluir em Lisboa o debate multilateral sobre as questões da sustentabilidade oceânica.
Combinando a diversidade das suas relações bilaterais com a participação nos fóruns multilaterais, Portugal, não tendo beneficiado particularmente da globalização nem sendo um ator especificamente relevante em termos internacionais, apresenta características de soft power que se ajustam a estes cenários de negociação complexa. Ou seja, Portugal pode ser um agente de sensibilização entre culturas e sociedades no que concerne à negociação diplomática de temas globais como as alterações climáticas ou até as migrações.
Encarar globalmente problemas que os Estados por si só, não conseguem resolver, é contribuir para a sua solução.
Esta negociação em tempos de aumento de confrontação em termos internacionais, seja militar, seja comunicacional, demonstra que há um espaço para tratar do essencial, quando existe essa vontade. Desmobilizar ou menorizar as organizações internacionais que funcionam como fóruns globais, terá um preço altíssimo para todos nós.
Cabe também a países médios e pequenos, como Portugal e os estados insulares que garantiram a inscrição do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14, dedicado ao mar, assegurar que a diplomacia multilateral e global consegue vencer as adversidades. Primeiro, sentando na mesma assembleia adversários e competidores, segundo, sendo perseverantes e exigentes nas negociações.