Fomos surpreendidos recentemente com uma comunicação da Via Verde anunciando unilateralmente um novo preçário para o serviço de pagamento proporcionado pelos seus identificadores.

Segundo a empresa, o anterior serviço de pagamentos passa a ser dividido em dois, (1) o de autoestradas para pagamento das mesmas, o qual se mantém nos 49 cêntimos/mês tal como antes, e (2) o pagamento dos serviços adicionais, ao qual chamam mobilidade, e que passa a custar mais 6 euros/identificador/ano. Este segundo serviço inclui pagamentos no McDonald’s, em bombas de gasolina, ferries, parques de estacionamento cobertos e algumas farmácias. Parece que a migração para a nova tarifa mobilidade será automática…

O abuso de posição dominante por parte de uma empresa monopolista não vem à baila, pois tudo acontece com a autorização de um governo democraticamente eleito (aliás, quantas não serão as empresas que também gostariam usufruir de penhoras automáticas). Sabendo que estamos a atravessar uma revolução nos meios de pagamentos, qual será, para a Via Verde, o valor estratégico subjacente ao incremento unilateral de preço para o serviço mobilidade?

Um meio de pagamento é um serviço proporcionado por uma plataforma (chamada multi-sided), e que serve de mediador entre os dois lados do mercado, consumidores e fornecedores. Essa plataforma encontra o seu valor no número de nodos interligados por si (nota: a teoria chama-lhe efeito de rede). Por exemplo, o serviço telefónico tem sucesso porque é universal, ou seja, porque todos podemos comunicar uns com os outros mesmo estando ligados através de operadores diferentes.

A extraordinária criação de valor para o consumidor final da Via Verde autoestradas tem origem precisamente na sua universalidade, o que inclui o pagamento das SCUT (nota: relembro que SCUT quer dizer Sem Custos para o UTilizador, cujo pagamento sem Via Verde é pior que um pesadelo).

No panorama dos meios de pagamento, Via Verde tem claras ambições, pois, para além dos identificadores, também oferece uma app para pagamentos no seu ecossistema (apenas para estacionamento descoberto e carregamento de carros eléctricos, para já). Olhemos então para o seu posicionamento estratégico, visto dos dois lados, comerciantes e consumidores.

Do lado dos comerciantes, o crescimento encontra-se limitado à necessária presença do identificador, daí encontrarmos a Via Verde nas de bombas de gasolina, por exemplo, mas não no retalho em geral. Além disso, a necessidade de instalar dispositivos de leitura nos comerciantes, para que estes possam comunicar com os identificadores de Via Verde, é uma forte limitação adicional, pois onera extraordinariamente a expansão da rede. Assim, o sucesso da Via Verde mobilidade só poderá vir do lado dos consumidores, mas sempre dentro do ecossistema limitado pelo universo dos comerciantes elegíveis.

Do lado do consumidor, o serviço mobilidade está à distância de outras alternativas, pois qualquer pessoa jurídica é livre de utilizar o meio de pagamento que quiser dentro dos limites da lei. Para ganhar a preferência do consumidor, a Via Verde está a utilizar o seu meio de pagamento com identificadores a servir de isco para esta captura de valor adicional de 6 euros/identificador/ano. Está no seu direito. Mas então porque é estrategicamente um tiro no pé?

Um preçário começa por ser uma forma de capturar valor para o fornecedor, porém, quando bem utilizado, também pode criar valor para o consumidor. A Via Verde refere-se a este novo preçário como uma “simplificação”, quando afinal o seu serviço já era simples e livre na sua essência, pois, em tempos, os consumidores compravam os identificadores, pagavam as passagens nos pórticos, mas não pelo serviço de pagamento em si (nota: a teoria chama-lhe cost value).

Consequentemente, a Via Verde está agora a complicar, mesmo que diga simpaticamente o contrário. Além disso, passar a pagar por um serviço que antes era livre só destrói valor para o lado do consumidor, até porque as transferências e os pagamentos sem custos estão a ficar na moda, tal como o provam os QrCodes na China, ou o Revolut e o MBWay  por cá (no Ocidente só falta mesmo a ligação directa ao POS sem passar pelo TPA…).

Por outro lado, o panorama dos serviços de pagamento no espaço SEPA vai no sentido oposto. O Banco Central Europeu anunciou a 25 de Novembro passado o incentivo à extensão do PSD2 aos pagamentos “peer-to-peer” e ao uso generalizado de QrCodes no espaço SEPA, algo que a SIBS já está, aliás, a oferecer em todos os TPA que suporta. Quer isto dizer que a conveniência dos pagamentos, incluindo bombas de gasolina, por exemplo, passará em breve a ser tão simples quanto o envio de uma mensagem (como no Revolut ou no MbWay), ou a leitura de um QrCode, dado que os POS(caixas registadoras electrónicas) vão ter de se adaptar naturalmente à estratégia do sistema bancário.

Assim, quando a Via Verde está a obrigar os consumidores a pagar o serviço mobilidade por 6 euros/ano, numa altura em que a sua concorrência está a caminho de oferecer a universalidade dos pagamentos com altos níveis de conveniência, estará mesmo a dar um tiro no pé.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.