“Assim o povo, que tem sempre melhor gosto e mais puro do que essa escuma descorada que anda ao de cima das populações, e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade”, Almeida Garrett, “Viagens na Minha Terra”, 1846

Não é possível entender o populismo sem entender a soberania popular. Ou seja, a história do populismo está intimamente ligada à história da soberania popular e à ideia de que a soberania pertence ao povo.

Ideia logo contestada a seguir à Revolução Francesa pelo pensamento reaccionário. Joseph de Maistre no seu “Estudos sobre Soberania” sabe bem quem acusar: “Foram vocês [os filósofos iluministas] que disseram ao povo ‘são vocês os soberanos’ e que ‘podem mudar as leis à vontade, até as melhores leis, fundamentais, e se vocês quiserem prejudicar-se a vós próprios, quem vos pode impedir?” E De Maistre conclui , “Tudo o resto [o caos, a desordem, a decadência], tudo o resto é a consequência”.

Esta ideia da necessidade de imposição de limites à soberania popular é uma ideia que está longe de ser exclusiva do pensamento reaccionário. “Demagogia”, na Grécia Antiga, inicialmente não tinha uma conotação negativa. Demagogos eram apenas os “guias do povo”. Mas eram por isso vistos como perigosos para o “bom governo” e para os interesses das elites, sempre receosas da instabilidade das massas. Elas tinham que ser controladas a partir “de cima” e não manipuladas “por baixo”. A crítica aos demagogos era uma crítica aristocrática.

Se avançarmos no tempo, para as democracias liberais de hoje, reparamos – e isso é muito claro a partir da Segunda Guerra Mundial – que a democracia que emerge do pós-guerra, por causa da experiência totalitária, é uma democracia especial. É aquilo que se chama de “democracia constrangida” e com enorme poder de corpos não eleitos e que escapam ao controlo popular – como os tribunais constitucionais, os bancos centrais, as instituições supranacionais, grupos de especialistas, lobbies, etc.. E é uma democracia hostil a dinâmicas de excessiva soberania popular, ou à própria ideia de governos populares. São democracias controladas por elites.

O que por si não é nenhuma novidade – a história do poder, seja em que regime for, é a história da substituição de elites, umas pelas outras. E, do ponto de vista populista, o que interessa é levar novas elites ao poder, mas desta vez elites enraizadas e em sintonia com o povo, em vez das elites desenraizadas e globalistas do presente.

A tendência de fundo dos populismos é a de sempre falar em nome do povo soberano. A tendência de fundo dos liberais é a de sempre falar em nome dos indivíduos. E se uns dizem que as democracias liberais levam à tirania das minorias, outros acusam os populismos de levar à tirania das maiorias. Daí que o crescimento dos populismos – e a sua defesa de uma política mais majoritária, mais plebiscitaria, onde o poder do povo é, à partida, mais ilimitado – constitua um teste de stress à democracia liberal porque ela é mais virada para os indivíduos, para as minorias de todo o tipo, apoiando-se numa rede complexa de instituições que, na prática, limitam o poder do povo.

Crise de confiança

Em Portugal o populismo de protesto (contra o sistema) insiste muito nesta ideia de uma democracia de “fachada” e de que não existe uma “verdadeira democracia”. E há razões estruturais que ajudam a que as pessoas sejam receptivas a esse discurso. Em Portugal há um apoio difuso à democracia (até superior à média europeia), mas existe uma crise de confiança nas instituições – no parlamento e nos partidos políticos. Existe muito a ideia de que a democracia portuguesa é, sobretudo, um feudo de partidos – partidos-carteis que colonizam o Estado e a administração pública. No fundo, a ideia de que a partidocracia serve “os de cima” contra os interesses dos “de baixo”.

E o que é um facto é que não tem havido reformas do sistema político – a fim de mudar um pouco na opinião pública esta ideia da partidocracia. Até porque continua a haver uma hegemonia clara dos dois principais partidos e não existe a fragmentação partidária que existe noutros países europeus, nem novos partidos suficientemente fortes para desafiar esse domínio. E depois há outros factores agravantes desta crise de confiança, como os casos sem fim de promiscuidade do mundo político e do mundo financeiro, e os casos de corrupção que envolvem políticos e até altas figuras do Estado. Episódios que só minam a confiança das pessoas nas elites que nos governam.

Claro que há sempre quem diga que tudo isto é normal. No funcionamento das democracias, dizem-nos, muitas pessoas, simplesmente, não querem saber, não se interessam, não participam, sempre foi e sempre será assim. Esta atitude de “deixar andar” tem riscos. Primeiro, ignora, voluntária ou involuntariamente, que a situação está pior.

Basta comparar a abstenção (mesmo sabendo-se que os cadernos eleitorais estão inflacionais, que há eleitores-fantasmas, etc.). Há 40 anos atrás, a abstenção nas legislativas era de 15 %; agora, em 2022, é de mais de 40%. Depois, omite os retrocessos na qualidade da democracia em Portugal – em áreas como a independência judicial, ausência de corrupção e a igualdade perante a lei.

E, finalmente, normalizar esta crise de representação também pode ser um incentivo a que as coisas continuem como estão e leva à complacência – a que não haja uma mudança de comportamento na cultura política e a que não haja reformas institucionais, na esperança de que mesmo não se fazendo nada as coisas não continuem a piorar. Esse caminho é o da fé e da crença.

Os novos portugueses

Mas para além das razões que alimentam os populismos de protesto existem outras que, tal como referi na parte final do meu livro “Populismo lá fora e cá dentro”, irão alimentar populismos identitários de defesa do povo numa vertente mais histórico-cultural e étnica. Essas razões estão ligadas às mudanças demográficas no país, com a adoção do multiculturalismo como modelo de sociedade, com o aumento quer de populações de origem imigrante quer de novos imigrantes, assim como mudanças profundas da lei da nacionalidade e o aumento exponencial do número de novos portugueses.

Foquemo-nos apenas na questão da nacionalidade. Uma simples pergunta no Google sobre qual o país europeu onde é mais fácil obter a cidadania, dá-nos imediatamente uma resposta: Portugal. O efeito de chamada é inevitável e isso tem vários efeitos, a começar pelas longas filas de espera nos serviços de registo e notariado incapazes de gerir tantos pedidos. Sem surpresa, Portugal subiu ao topo dos países europeus que mais concedem a nacionalidade por naturalização.

Se é verdade que as nações são comunidades de contrato, convém não esquecer que elas são também comunidades de cultura – existe uma dimensão cultural, emocional, ontológica até, e mais ampla e profunda do que um simples papel. Essa dimensão tem a ver com a ligação passado-presente-futuro, com a transmissão geracional, com a memória colectiva e tradições. Enfim, com a ideia e o sentimento de que fazemos parte de uma corrente.

Ora, a consequência maior da liberalização acentuada da nossa lei da nacionalidade é esta: Portugal está a ir demasiado na direcção legal (a ligação à nação apenas através de um documento) e a afastar-se demasiado da direcção cultural .

Seremos ingénuos se pensarmos que esta viragem, a médio e a longo prazo, não tem potenciais consequências negativas para a coesão social, comunitária e nacional. Sobretudo nos últimos anos, tem havido um claro desleixo e leviandade na abordagem deste tema por parte dos nossos dirigentes políticos. Repare-se como Portugal, ao contrário de outros países europeus, nem sequer testes de cidadania tem. E o factor que o socialista Almeida Santos falava como essencial para a lei da nacionalidade – a “ligação efetiva à comunidade nacional” – tem sido cada vez mais descurado.

A menos que partamos do princípio de que Portugal é uma terra mágica imune a problemas que outros países europeus sentem, em termos de convivência entre diferentes populações dentro do seu território, teremos que admitir a possibilidade no futuro, numa sociedade cada vez mais tribalizada entre diferentes comunidades, com as suas identidades e reivindicações, do crescimento de populismos identitários de defesa do povo português como entidade física e enraizada (e, porque não, de populismos desse tipo representativos de populações de outro tipo de origem).

E o Chega? O Chega é um primeiro sinal desses novos tempos. Mas está ainda longe de ser um produto acabado.

Não há em Portugal um debate sobre este assunto. Nos meios urbanos, políticos e mediáticos, os custos de se falar em assuntos desconfortáveis excedem os benefícios – e a maior parte das pessoas quer ter uma vida quieta. A maior parte das pessoas não quer ter uma vida de inquietações. Mas mais cedo ou mais tarde, a realidade impõe-se ao desconforto de se falar nela.

Muitas vezes vemos comentadores mostrar uma certa perplexidade pelo sucesso dos populismos: “mas as pessoas são ignorantes?”, mas preferem a “polarização, o radicalismo”? Mas essa perplexidade também se pode aplicar à ausência de políticas equilibradas e até de simples bom senso no tratamento de questões delicadas e que facilmente, caso sejam mal geridas, podem originar desunião e conflito.

Como disse, um dia, Bossuet, “Deus ri-se dos homens que lamentam os efeitos das causas que promovem”.

José Pedro Zúquete assina este texto no âmbito da parceria entre o Jornal Económico e a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), na qualidade de autor de “Populismo lá fora e cá dentro”, editado pela FFMS.