A espuma dos dias dita a agenda.

Entre expressões como o muro de Trump, o hard Brexit de Theresa May, os picaninnies, no modo como Boris Johnson apelidou os negros, ou o seu desejo de que a UE go whistle e ainda o pânico de Marine Le Pen com a carne halal, de todas elas, pouco mais resta que uma sopa de letras. Tão bizarras quanto incompreensíveis para a generalidade de quem as ouve.

E se, no entanto, elas nos falam de uma realidade que já conhecemos? Escreveu Fernão Mendes Pinto, em Peregrinação: “Diogo Zeimoto, tomaua … tirar com hua espingarda … porq … naquella terra nunca se tinha visto tiro de fogo, … assentarão todos que era feitiçaria. E lha [ao Nautaquim] offereceo hum dia, a qual elle aceitou … & lhe affirmou que a estimaua muyto mais que todo o tisouro da China”.

Num território dilacerado pela miséria e pelo desespero imposto por senhores da guerra secularmente desavindos, a crónica da “descoberta” da espingarda pelos japoneses, por obra e graça dos portugueses, não é a de uma verdadeira descoberta. Antes o é daquilo que os japoneses já conheciam. É a história da guerra. De mais um episódio do que fora até aí a história do Japão.

Mas a estranheza das formas e dos hábitos destes homens de nariz grande e desta coisa a que chamaram pau de fogo, tomou a forma visível de uma cultura milenar rendida ao fascínio da novidade. Embriagados por estes bárbaros do sul, nem perceberam o que estava para vir: a reprodução em massa de uma arma; a quebra definitiva das regras de honra que permeavam a ética de combate entre guerreiros; a industrialização da morte.

Também por cá, o que é agora apelidado de inédito nas democracias ocidentais é bem capaz de ser sintomático do que nelas já se conhece e que a sua história, mesmo a recente, testemunha. A sangue. É nova a forma escolhida para afirmar a substância de sempre. Feita do apelo ao Estado nacional e à promessa de que apenas este protege os seus, lhes garante conforto, alivia os seus receios e preserva intocável a sua genuína e superior identidade. Ao outro, no entanto, e à inquietação que a sua diferença gera, nada mais resta que o lugar do estranho. Onde esteja o estrangeiro, aí estará a presença visível do indesejado.

Mas, na voz dos novos líderes, ao seu povo se apresenta o Estado de forma inédita. Um Estado que não é, nem pretende ser, a nossa mãe ou o nosso pai ou mesmo o nosso assumido protetor. Ele é antes a nossa cara. É um dos nossos. É como nós. Onde sejamos ignorantes, o Estado sê-lo-á também. E o medo do outro que essa ignorância gera será o seu medo. Pois o Estado é o retrato do seu povo e o seu líder, a sua voz. E o líder fará o que, motivado pelo medo, a nossa ignorância desencadeie. Para isso, só precisa do nosso voto. E do nosso medo. Isso é novo. Já o medo, esse, é ancestral.