O problema do trabalho sem sentido

Por que razão se criariam postos de trabalho que aparentemente não servem para nada e chegam a ser tão vazios que obrigam os trabalhadores a fingir estar ocupados para não perder a face?

Se há tema consensual da esquerda à direita do espectro político é o do valor do trabalho. A direita liberal tende a aceitar e mesmo a justificar a existência de desigualdades de rendimento ou riqueza como alegado resultado de mérito no trabalho. Já a esquerda, sobretudo a de matriz hegeliano-marxista, vê no trabalho não alienado um vetor de realização de liberdade e transformação do mundo.

No fundo, ambas as visões reconhecem no trabalho um potencial emancipatório. A primeira insistirá na possível ascensão social pelo sucesso individual; a segunda apostará na criação coletiva das condições para que se elimine a exploração e se obtenha uma sociedade mais cooperativa e menos desigual.

Seria absurdo negar esse potencial ou o papel essencial do trabalho na socialização, realização pessoal e construção da identidade de cada um. Contudo, também seria inocente acreditar que, na esmagadora maioria dos casos, o trabalho tem esse papel positivo. O que não falta por todo o lado são empregos com tarefas penosas ou cujo sentido é questionado, mais ou menos secretamente, pelos próprios empregados, e cuja necessidade podemos objetivamente pôr em causa. Com efeito, quantos dos leitores deste texto poderão, sem esforço ou falsidade, assumir que o seu emprego os satisfaz? Quantos acreditam que, se o tipo de trabalho que têm desaparecesse, viria daí um mal irreparável ao mundo?

Como já terá reparado quem está familiarizado com o tema, escrevo estas linhas a propósito da publicação em Portugal, nas Edições 70 e com tradução de Hugo Barros, do livro “Trabalhos de Merda” de David Graeber.

Graeber, que morreu em 2020 aos 59 anos de idade, foi um autor extremamente astuto e provocador, capaz de pensar nos interstícios e ter perspetivas originais, tendo o condão de colocar perguntas que, uma vez formuladas, pareciam óbvias. Mundialmente famoso, também pelo seu envolvimento no movimento Occupy Wall Street, para o qual cunhou o slogan “nós somos os 99%”, começa a ser objeto de maior atenção em Portugal, graças às traduções deste livro e de outros dois: “Dívida – Os Primeiros 5000 Anos” eO Princípio de Tudo – Uma Nova História da Humanidade”. Aqui, cingir-me-ei ao livro sobre o trabalho e a algumas das questões que levanta.

Sacrificados no altar do Deus trabalho

O problema é conhecido. Tendo em conta o constante progresso tecnológico e a crescente penetração da automatização e robotização nos processos de produção, é espantoso que não trabalhemos menos. A hipótese de partida de Graeber, formulada originalmente em 2013 num ensaio publicado na revista “Strike!” e reproduzida neste livro, é simples: “é como se alguém se propusesse criar trabalhos inúteis somente para nos manter a trabalhar” (p. 15).

A questão aqui não é tanto, como sublinhei num ensaio anterior, que a utilidade deva ser o critério de toda a atividade humana. De facto, muitas das coisas que fazemos podem ser justificadas pelo sentido que, em si mesmas, têm para nós. Mas o caso muda de figura quando aquilo que está em causa é essa forma de usura do tempo de outrem que surge com o trabalho assalariado. Por que razão se criariam postos de trabalho que aparentemente não servem para nada e chegam a ser tão vazios que obrigam os trabalhadores a fingir estar ocupados para não perder a face?

O trabalho assalariado é relativamente recente na história da Humanidade. Graeber sublinha as raízes teológicas das nossas atitudes para com o trabalho, visto simultaneamente como sacrifício e atividade instrumental, sendo a obsessão com a produção um sucedâneo do ato da criação, e a competição uma consequência da infinidade dos nossos desejos num mundo finito. E lembra como, à medida que o capitalismo vai transformando as relações de serviços em relações permanentes de trabalho assalariado em que os detentores de capital empregam quem não tem capital, estas origens teológicas se vão naturalizando através de uma moralização do trabalho.

Mostra-se como, paulatinamente, se vai impondo culturalmente a noção de que o trabalho é fonte de valor moral; é virtuoso quem trabalha (e, portanto, não o é quem não quer trabalhar) também, e talvez sobretudo, porque implica disciplina e sacrifício.

O problema, como se pode ver, reside nesta heroicização do sofrimento. E isso transparece em diversos tipos de trabalho. Graeber distingue os “trabalhos merdosos”, dos “trabalhos de merda” (vocabulário aqui usado como termos técnicos), mas ambos implicam sofrimento.

Os primeiros envolvem tarefas penosas (física e/ou psicologicamente) mas socialmente necessárias (pense-se, por exemplo, na recolha de lixo). Os segundos são empregos desnecessários e prejudiciais a ponto de, muitas vezes, nem quem os tem conseguir justificar a sua existência (p. 35). E, neste caso, tendem a envolver uma violência espiritual que, para Graeber, vem do jogo forçado do faz de conta e da incapacidade de se estar a fazer algo de significativo. Tudo isto leva à perceção da falta de sentido de um trabalho no qual se está apenas pela remuneração e que, acrescentemos, tanto pode levar à “demissão silenciosa” como, provavelmente, a fenómenos como a síndrome do impostor ou outras formas de sofrimento psicológico.

Uma tipologia

Mas que tipos de trabalhos são estes, e de que forma é que eles influenciam o resto da economia? Uma parte está relacionada com a ascensão da burocracia, naquilo a que Weber chamava a “gaiola de aço” do capitalismo, com os seus autoimpostos processos de racionalização. Contudo, e ao contrário do que se possa pensar, não estão sobretudo ligados à administração pública, existindo frequentemente no setor privado e sendo muitas vezes bem remunerados e detentores de cargos sofisticados.

Graeber distingue cinco variantes principais: lacaios, rufias, remendeiros, preenchedores de formulários e capatazes. O livro está cheio de narrativas tragicómicas de indivíduos que confidenciaram ao autor as suas próprias experiências profissionais deste género. Vejamos os seus traços gerais.

Os lacaios existem para fazer alguém parecer importante. Era o caso de Jack, telefonista de um corretor bolsista, e cuja função era reforçar o estatuto simbólico do corretor, que por sua vez queria impressionar o seu próprio chefe.

Os rufias são aqueles cuja atividade é agressiva (em sentido figurado) e muitas vezes envolve a perceção de alguma desonestidade implicitamente envolvida na própria atividade. Graeber invoca a advocacia empresarial e a atividade de call centers, mas também o caso de Tom, que trabalhava para uma empresa de pós-produção de anúncios e que tinha plena consciência da perversidade do mecanismo de criar perceções irrealistas nos consumidores para, fazendo-os sentir-se mal consigo mesmos, a seguir sobrestimar a eficácia dos produtos promovidos.

Quanto aos remendeiros, são pessoas cuja função consiste em trabalho subordinado de sistematicamente reparar erros que não deviam existir, geralmente da responsabilidade de superiores a quem, muitas vezes, falta competência para desempenhar o cargo. Podem ser cargos técnicos, e muitas vezes só existem para mascarar as incapacidades dos superiores.

Quando se fala de preenchedores de formulários o que está em causa é não só o crescimento absurdo do trabalho administrativo, mas também a aparência de atividade. Referem-se, entre outras coisas, a constituição de comissões e inquéritos, a escrita de relatórios e apresentações por nenhuma outra razão substancial que a vontade de se fingir estar a apresentar serviço para resolver um problema, ou para se poder cobrar esse serviço. Nesta variante abundam os exemplos empresariais e de consultadoria.

Finalmente, os capatazes são aqueles cujo papel principal é atribuir atividades desnecessárias a outros, por exemplo supervisionando pessoas que na verdade não precisam de supervisão. Podem ser cargos de gestão intermédia, ou então cargos com poder simbólico, mas pouco poder real. É o caso de Chloe, que ocupou um cargo de reitoria não executiva, encarregada de desenhar uma declaração de visão estratégica, mas não tendo poder efetivo para a implementar, e que acabou a gerir uma equipa administrativa sem grande propósito, tendo passado dois anos a inventar trabalho para si e para essa equipa.

Para além disso, insiste Graeber, o problema é que a proliferação destes trabalhos e a própria extensão da burocracia e outros fenómenos aparentemente sem sentido têm um efeito de alastramento na economia em geral. Mas haveria outra solução?

Ainda o Rendimento Básico Incondicional

Se Weber analisou a importância do trabalho feito por vocação e Marx denunciou o trabalho alienado, Graeber dá conta do profundo paradoxo da relação inversa entre o valor social do trabalho e a sua remuneração. Assim, e salvo raras exceções (por exemplo os médicos), para Graeber, quanto mais socialmente valioso é um trabalho (por exemplo, o de cuidador, ou de professor) menos provável é que se aufira uma remuneração elevada por ele, como se, no caso destes trabalhos a virtude fosse a sua própria recompensa e, nos outros casos, o salário compensasse o sacrifício do trabalho inútil.

É claro que tudo isto pode parecer duvidoso ou até impossível se se acreditar que, por definição, os mercados eliminam automaticamente este tipo de ineficiências. Mas não será esta crença uma fuga da realidade?

Graeber não apresenta nenhuma panaceia que permitisse resolver todos estes problemas. Contudo, vê no Rendimento Básico Incondicional (RBI), medida sobre a qual eu próprio e os colegas Roberto Merrill, Sara Bizarro e Jorge Pinto escrevemos o livro “Rendimento Básico Incondicional: uma defesa da liberdade”, uma forma de começar a mitigá-los. No caso de Graeber, advoga-se o RBI por permitir desassociar o direito à sobrevivência digna da necessidade do trabalho sem sentido, e significar a redução da burocracia associada ao carácter intrusivo da inspeção da vida dos beneficiários de apoios sociais. E, em última instância, por permitir que as pessoas se dedicassem às suas vocações de forma genuína, eliminando alguns dos efeitos nocivos dos trabalhos descritos neste livro.

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