1. O caso dos votos da emigração, que terão de ser repetidos no círculo da Europa, é o mais recente paradigma do funcionamento do regime, do sistema, da República – como se quiser –, porque prova que os partidos são capazes de se organizarem entre si para, com um bom pretexto, num distinto ‘acordo de cavalheiros’, fintarem a Lei (que eles próprios propõem, discutem e aprovam).

Substantivamente: a Lei manda, até que os deputados a alterem no Parlamento, que os votos por correspondência oriundos dos círculos da emigração venham em dois envelopes. Num, exterior, deve ser colocada fotocópia de um documento de identificação – bilhete de identidade ou cartão de cidadão. No outro, dentro desse, segue o voto, cujo boletim foi, antes, enviado, pela administração central, para a morada do cidadão recenseado no estrangeiro.

Em princípio, sempre se entendeu que o secretismo devido ao voto estava, assim, devidamente defendido.

2. Os partidos, entre os quais o PS e o PSD, a 18 de janeiro, decidiram “agilizar” o processo e estabeleceram um acordo informal para que os emigrantes não tivessem de cumprir a Lei, ou seja, fosse dispensada a fotocópia do documento pessoal. O PSD, aconselhado pelo seu departamento jurídico, percebeu entretanto a dimensão do ato, e decidiu, numa segunda reunião (4 de fevereiro, já depois das eleições), sair do acordo. Rui Rio fez declarações sobre a matéria.

Os factos são conhecidos. É na sequência das complicações introduzidas por esse querer aligeirar o processo, e melhor pseudo-defender a identidade dos votantes, que 157 mil votos no Círculo da Europa acabaram deitados ao lixo. Mistura feita, já não dava para identificar os legais e os ilegais.

O Tribunal Constitucional (TC) deu razão a uma queixa do Volt e as eleições na Europa terão de ser repetidas. No resto do mundo, chamado círculo de fora da Europa, a situação foi a mesma, de ilegalidade, mas como ninguém pediu a apreciação do TC a coisa segue. É mesmo assim. Foi ilegal mas vai valer!

Conclusão: as eleições serão repetidas a 12 e 13 de março. Os votos por correspondência podem chegar até 23, estarão contados a 25. Isso significa que o Parlamento só pode começar a funcionar depois disso, não haverá Governo antes de abril nem orçamento do Estado antes de junho.

3. O caso, para além de grave, é uma ilustração perfeita da idiossincrasia portuguesa. O desenrascanço substitui a organização, o planeamento, o trabalho feito com tempo. Além do mais, a Lei tem dias, é uma coisa relativa. Baliza mas não obriga. Não é para todos, dirige-se apenas a alguns. Ficamos a saber que é assim até para os deputados, para aqueles que são chamados a propor, a aprovar e a zelar pelo cumprimento da Lei.

Dito isto, está tudo dito. Resta acrescentar que o Presidente Marcelo, como muitas vezes, comentou sem pensar o suficiente (achava que o processo eleitoral não iria sofrer qualquer dano – e disse-o!) e de novo, mais avisado e sagaz, António Costa fez o óbvio: pediu desculpa em nome do Estado.

É este o retrato de Portugal.