A realização da recente cimeira de três dias em Moscovo, entre os presidentes Vladimir Putin e Xi Jinping, veio demonstrar que nos encontramos no dealbar de uma nova era, em que a Ordem Internacional unipolar e o projeto hegemónico global norte-americano se encontram seriamente comprometidos.

Como escreveu Zbigniew Brzezinski no seu profusamente citado “Grande tabuleiro de xadrez”, a maior ameaça ao projeto hegemónico norte-americano é uma aliança anti hegemónica da China, Rússia e Irão. Foi disso que se tratou nesta cimeira, no que respeita à China e à Rússia. Com receio de que uma possível aliança entre a Rússia e Europa Ocidental (matérias-primas baratas e indústrias tecnologicamente avançadas) pudesse ameaçar as ambições imperialistas norte-americanas na Eurásia, Washington desencadeou incautamente a aproximação de Moscovo a Pequim.

Essa mudança na Ordem Internacional iniciou-se de modo consistente no final da primeira década do século XXI, cujo ponto de partida terá sido o discurso de Putin na Conferência de Segurança de Munique, em 2007, seguida da criação dos BRICS (segundo estimativas para 2030, 40% da população mundial e 31,5% do PIB global, enquanto o G7 representa apenas 10% da população mundial e 30% do PIB global), e, uns anos mais tarde, de instituições financeiras alternativas àquelas lideradas pelos EUA, procurando Pequim ultrapassar a resistência de Washington à redistribuição de poder nas maiores instituições financeiras internacionais, que refletisse as suas contribuições para elas.

Cientes do significado deste encontro, os EUA tentaram mitigar o seu impacto político e mediático. Não será de estranhar que tenha sido precedido pelo mandado de captura de Putin, emitido pelo TPI; que a visita do primeiro-ministro japonês Fumio Kishida a Kiev tenha decorrido em simultâneo; que Washington tenha desclassificado nesse momento informação sobre as ligações de um laboratório na China com as origens da Covid-19; e que o presidente Biden tenha tentado falar com Xi na véspera da Cimeira para desviar atenções e esvaziá-la de conteúdo.

Na cimeira foram celebrados 12 protocolos de cooperação em vários domínios, desde o energético, ao económico, industrial e tecnológico, passando pelo espacial. Mas o que realmente dela relevou situa-se no plano geopolítico, e resume-se ao que Xi disse a Putin, no momento da despedida: “Juntos, devemos levar por diante essas mudanças que não acontecem há 100 anos,” manifestando claramente a vontade dos dois líderes em reforçarem e alinharem os seus esforços para enfraquecerem a influência global dos EUA.

Desta cimeira emergiu claramente um bloco económico (em que, uma vez mais, se conjugam matérias-primas baratas e indústrias tecnologicamente avançadas) disposto a “desdolarizar” o comércio global, que, a concretizar-se, terá um efeito demolidor para os EUA. Esta cimeira veio assim “oficializar” uma estratégia articulada nesse sentido.

Para o bem e para o mal, o Ocidente tem de se habituar à “dura” ideia de não poder mais definir unilateralmente, e nos seus próprios termos e interesses, a agenda global, como o fez ao longo de séculos. A recusa de Xi atender o mencionado telefonema de Biden, com o intuito de fazer um reboot nas relações entre as duas potências e as visitas programadas de líderes europeus a Pequim, nomeadamente da presidente da Comissão Europeia, no rescaldo desta cimeira, são uma evidência da nova correlação de forças que está em marcha.