Uma marca histórica das guerras interestatais é o silenciar das vozes dos inocentes antes, durante e depois do fim dos conflitos armados. Este silenciar dos inocentes acaba por ser o resultado dos processos de negociação dos acordos de paz, que nunca contaram com a presença dos grupos da sociedade civil. A exclusão dos grupos da sociedade civil das negociações de paz demonstra que quer a guerra e quer a paz são decisões dos políticos e não dos povos.

Além disso, essa decisão de exclusão visa evitar uma exposição mediática e política dos actos criminosos e abusivos cometidos durante a guerra. Assim, estes actos só surgem ao conhecimento público, mais tarde, e por reivindicação das organizações da sociedade civil. Visto que os Estados optam, muitas vezes, por abdicar de responsabilizar os seus exércitos pelos actos praticados em contexto de guerra.

Normalmente, os inocentes nos teatros de guerra estão quase sempre à mercê dos soldados, mercenários ou voluntários. Ou seja, os sujeitos inscritos no registo de guerra ou os sujeitos que fazem a guerra. Ainda hoje, no imaginário colectivo, quem faz a guerra é um de jovem de sexo masculino, apesar de nos últimos tempos se ter assistido à inclusão das mulheres nas forças armadas. São, de facto, estes jovens soldados que fazem a guerra por decisão de homens políticos que já se encontram fora da jurisdição da idade da guerra.

Em razão disto, a guerra reforça quase sempre o poder dos homens e suspende quase na totalidade o poder das mulheres. Por exemplo, as mulheres estão quase sempre ausentes nos processos de decisão do início e do fim da guerra, o que não deve constituir uma surpresa, dado que as mulheres estão sub-representadas na esfera política e, sobretudo, militar.

Assim, a guerra serve para reforçar o poder dos homens, que passam a actuar dentro de uma zona de indistinção, conforme explicado por Achille Mbembe, em “As formas africanas de auto-inscrição”: «ou seja, em um espaço fora da jurisdição humana, em que as fronteiras entre a regra da lei e o caos desaparecem, as decisões sobre a vida e a morte se tornam inteiramente arbitrárias e tudo se torna possível» (2001:194). Por isso, um dos crimes mais cometidos nas guerras é o de violação das mulheres pelos jovens militares, que acaba por ser uma extensão do seu poder político-militar dentro de um campo social regulado pelo poder da violência da guerra.

Esta crise política de desregulação dos limites do exercício do poder em estado de guerra torna-se superior quando uma guerra se estende até aos voluntários e mercenários. Os soldados permanecem sob a jurisdição de um dos Estados envolvidos directamente na guerra, o que possibilita uma responsabilização futura, ao contrário do que sucede com os voluntários e mercenários. Deste modo, a responsabilização só pode ser feita ao Estado que deu cobertura aos voluntários e mercenários, mas, muitas vezes, os Estados resistem em assumir tal responsabilização política dos homens ao serviço dos seus interesses.

Estes actos cometidos pelos homens durante a guerra não constam dos acordos de paz, isto é, não parece existir uma preocupação em instaurar qualquer tipo de procedimento ou criar mecanismos de responsabilização, nomeadamente através da constituição de uma comissão técnica para analisar as queixas dos inocentes e tentar repor a justiça a seu favor.

Os homens sentados à mesa das negociações preocupam-se apenas com a preservação dos interesses dos seus Estados, postergando qualquer questão relacionada com o sofrimento causado durante a guerra aos inocentes, que permanecem silenciados.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.