No dia 14 de maio, não se discute apenas o futuro imediato de cerca de 80 milhões de turcos; os resultados destas eleições terão um impacto no sistema regional euro-asiático que não será de desconsiderar.

Erdogan ficará para a história como o Presidente que liderou a Turquia no auge da sua europeização, iludindo inclusivamente kemalistas, curdos e elites ocidentais, e conseguiu retroceder a qualidade da sua democracia para valores anteriores aos da década de 90 do século passado: liberdade de expressão, respeito pelas minorias, Estado de Direito, independência do poder judicial, separação e interdependência de poderes, direitos políticos, media e da sociedade civil, corrupção e nepotismo foram algumas das áreas em que fez estragos significativos.

Apesar da economia ter-se salvado durante muito tempo, uma das razões pelas quais se foi mantendo no poder, já nem isso tem do seu lado, com uma inflação galopante e uma política macroeconómica pouco ortodoxa de desvalorização da lira que assusta os mais atentos.

Kılıçdaroğlu, não sendo a única alternativa, é o homem da oposição com melhores condições para esta corajosa e hercúlea tarefa: conhecido como o “Gandhi turco”, é moderado e discreto, consensual e denunciador de casos de corrupção, conciliador de uma alargada aliança de partidos com algumas divergências e, acima de tudo, com a ginástica de conseguir passar o radar das perseguições do AKP – talvez por não levantar suspeitas ao somar nove derrotas eleitorais contra o seu principal opositor.

Daqui a uns dias, a probabilidade de o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) perder as suas históricas maiorias é relativamente alta; menos segura está a vitória de Kılıçdaroğlu. Este é um teste à profundidade e à eventual irreversibilidade da ditadura na Turquia. Mas, também, é mais uma variável a ter em conta num período particularmente tenso: a dias da há muito anunciada grande contraofensiva ucraniana, a pressão turca não se comparará à influência chinesa, mas será de ter em conta. E ela poderá ser muito diferente, depois destas eleições.

E para o resto do mundo? Espera-se simplesmente a continuidade com Erdogan ou uma quasi disrupção com Kılıçdaroğlu. Como membro da NATO, candidato da União Europeia, parceiro cada vez mais próximo de Vladimir Putin e uma potência regional, o impacto das eleições da Turquia no resto do mundo não é assim tão irrelevante. Acima de tudo, a dúvida reside no grau da mudança de direção que poderá ser trazida por Kılıçdaroğlu.

Previsivelmente, o país reaproximar-se-á, política e diplomaticamente, dos Estados Unidos e da União Europeia, redinamizando as relações com o Ocidente. No entanto, como ficarão questões mais sensíveis para os interesses turcos, como é o caso da guerra na Líbia? E no conflito israelo-árabe? Retrair-se-á o novo Governo da aproximação recente e surpreendente a Bashar Al-Assad?

Sabemos que há consenso na aliança da oposição quanto ao regresso ao semipresidencialismo, mas não o há quanto ao destino dos refugiados. Todas as mudanças, contudo, dependerão do cenário que se concretizar nas próximas semanas: vitória de Erdogan para a Presidência e o AKP no Parlamento; derrota em ambos; vitória na presidência e derrota no Parlamento, ou vice-versa. O investimento da campanha é claro: num sistema presidencialista como o que está atualmente em vigor, a chave é o Presidente que consegue condicionar mais facilmente um Parlamento mais menos cooperante; mas a situação inversa também pode acontecer.

Esta não é uma oportunidade de mudança de regime na Turquia; é A oportunidade. Dificilmente, nos próximos anos, se conjugarão de forma tão desafiadora para Erdogan as condições que hoje se reúnem: descontentamento com a gestão do terramoto; desconforto com as sucessivas medidas draconianas e as perseguições políticas; desconfiança numa repentina reaproximação a Al-Assad; ceticismo quanto à proximidade com a Rússia; insatisfação com as depauperadas condições de vida e uma inflação que não para de aumentar.

A isto somam-se seis milhões de jovens eleitores que participarão pela primeira vez no ato eleitoral com tendências favoráveis à oposição; e uma vontade político-partidária alargada em mudar o regime, ao ponto de se vincularem a uma aliança frágil, mas que poderá vir a tornar-se uma geringonça a la turca, contra todas as expectativas.

Contudo, o entusiasmo com que algumas elites (principalmente na grande diáspora de exilados) têm acompanhado estas últimas semanas, se não corresponder à mudança, poderá ser como “cutucar” o urso; quanto a isso, acho que não haverá dúvidas: um Erdogan ferido com um iminente afastamento do poder será, sem dúvida, um Erdogan com mais adrenalina e energia para continuar o que começou há 20 anos.

Nas mais importantes eleições em 100 anos de história da República Moderna da Turquia, será um tudo ou nada, com pozinhos para o resto do mundo. Cumpra-se a vontade democrática, livre e soberana dos turcos.