No próximo dia 30 decorrem as terceiras eleições em período de pandemia: presidenciais primeiro, autárquicas depois e legislativas agora. É por isso surpreendente que, quando há alguns dias se (re)colocou a questão do voto dos eleitores sujeitos a uma medida administrativa de confinamento, as principais figuras do Estado se tenham sobressaltado, hesitando na resposta.

O Governo, em particular, pressentindo controvérsias indesejáveis em período de campanha, tratou de sacudir a água do capote e solicitou um parecer jurídico à Procuradoria Geral da República (PGR). Em vez de pedir um parecer à Direção Geral de Saúde sobre o modo “como” os cidadãos confinados podem e devem votar em segurança, o Governo terá perguntado à PGR “se” esses cidadãos poderão quebrar o isolamento para ir votar.

Sem surpresa alguma, a resposta – positiva – chegou na quarta-feira passada.

Segundo o artigo 49º da Constituição, o direito de sufrágio é universal. Todos os cidadãos portugueses maiores de 18 anos têm o direito de votar em todas os atos eleitorais. Votar é simultaneamente um direito fundamental e um dever cívico.

Em contrapartida, desde que terminaram os sucessivos estados de emergência decretados pelo Presidente da República que o confinamento obrigatório – de doentes com Covid-19, de infetados com SARS-Cov-2, e de pessoas colocadas em “vigilância ativa” pelas autoridades de saúde – decorre de decisões administrativas baseadas em Resoluções do Conselho de Ministros (RCM).

Em causa está, portanto, um simples regulamento administrativo, cuja posição na hierarquia das normas jurídicas está dois degraus abaixo da norma constitucional que consagra o direito de voto. De permeio, entre normas constitucionais e normas regulamentares, estão naturalmente as leis (ordinárias).

Ora, acontece que só as leis podem restringir direitos fundamentais com a natureza do direito de voto e, sempre, obedecendo a regras de competência estritas e a parâmetros materiais muito apertados. Nunca um regulamento administrativo pode, por si só, de forma autónoma e inovadora, restringir tais direitos.

Esta constitui, aliás, uma das mais velhas garantias do Estado de Direito Democrático: as restrições aos direitos dos cidadãos não podem resultar da ação mais ou menos casuística do poder executivo, mas têm sempre de ser consentidas pelos próprios cidadãos, através das leis gerais e abstratas que os seus representantes aprovam no Parlamento.

Por isso, juridicamente, sempre foi óbvio que a RCM que declara o estado de calamidade atualmente em vigor nunca poderia privar as pessoas confinadas do exercício do seu direito de voto. Por uma razão muito simples: não existe nenhuma lei em vigor – entre as leis eleitorais e aquelas que vagamente serviram de leis habilitantes da referida RCM – que permita excluir os cidadãos confinados do exercício do sufrágio.

Depois de 1974, o voto nunca esteve, não está, nem pode vir a estar confinado!