Temos todos ouvido várias explicações para o sucesso do processo de vacinação em Portugal. Uma parte delas passa pelo civismo dos portugueses – tese que, com o devido respeito, deixa por explicar muitos outros domínios da vida nacional.

Outras explicam o fenómeno com o carisma do “homem providencial”, que em boa hora substituiu um obscuro burocrata partidário – o tal que achava que os fura-filas das vacinas só eram um problema para os eleitores do Chega.
Outras ainda preferem salientar a fraca expressão, entre nós, das ideologias que acreditam firmemente na liberdade individual e desconfiam, por princípio, de tudo o que o Estado quer impor aos cidadãos: sejam impostos, sejam vacinas. Em Portugal, até os liberais são diferentes e têm dificuldade em assumir-se como um partido de direita.

A minha explicação é bem mais simples: as vacinas são de borla. E não há nada de que os portugueses gostem mais do que de uma boa borla. Podem até não precisar, não sentir a necessidade, mas se é de borla… Custassem as vacinas qualquer coisa, 50 cêntimos que fosse, e toda a estória teria sido bem diferente.

Bem conhecedores das inclinações dos portugueses, os autarcas locais dão uma ajuda à festa e oferecem mais qualquer coisa: uma garrafa de água, uma peça de fruta e, por vezes, até um micropacote de bolachas, tudo acondicionado num saco de papel reciclado com o logotipo da edilidade. Na vacinação das crianças ainda juntam umas gomas e uns espetáculos de palhaços. Não há português que não regresse dos centros de vacinação com a leve sensação de que ganhou o dia.

Mas não há bela sem senão. A gratuitidade ajuda também a justificar a falta de escrutínio público relativamente à segurança e aos efeitos das vacinas. Afinal, como diz o provérbio, “a cavalo dado não se olha a dente”! Foi montada uma narrativa – em Portugal, como em muitas outras partes do mundo – segundo a qual “é necessário confiar na ciência”. E vacinas são sinónimo de ciência. Por isso, nem ficaria bem fazer perguntas, quanto mais contestar.

Assim se explica igualmente que alguém, no Ministério da Saúde, tenha julgado possível decidir a vacinação universal das crianças, entre os cinco e os onze anos, sem revelar toda a informação disponível, com base na qual havia sido tomada essa decisão. Ou seja, tenha julgado possível deitar cá para fora apenas uma parte – aquela que os portugueses precisariam de conhecer – e fechar a sete chaves, nos arquivos do Ministério, as opiniões dissonantes, nomeadamente as dos pediatras.

De uma assentada, violavam-se assim quatro princípios constitucionais: o princípio do consentimento informado, em tudo o que respeita a tratamentos de saúde (artigo 25.º, n.º 1); o direito-dever dos pais de tomar as decisões que entendem melhores para a educação e manutenção dos seus filhos (artigo 36.º, n.º 5); o direito de todos os cidadãos a serem esclarecidos objetivamente sobre os atos do Estado e a serem informados pelo Governo acerca da gestão dos assuntos públicos (artigo 48.º, n.º 2); o princípio do arquivo aberto, segundo o qual os cidadãos têm direito de aceder aos registos e arquivos administrativos (exceto se a informação neles contida respeitar à segurança interna e externa, a investigação criminal e à privacidade das pessoas)(artigo 268.º, n.º 2).

A transparência – o governo à vista do povo – é um pilar essencial de qualquer democracia, por muito que a informação em causa possa constituir um embaraço para a prossecução de políticas públicas meritórias. O segredo na ação governativa é próprio das ditaduras.

De resto, questionar a ciência – desconfiar dos cientistas e exigir-lhes explicações – não é a mesma coisa que acreditar em charlatanices ou em teorias da conspiração. Bem pelo contrário. Ciência que é ciência não tem certezas absolutas e avança por tentativa e erro. Ciência que é ciência desconfia de si própria.

Desde que se iniciou a pandemia, os cientistas já erraram várias vezes – uns mais do que outros. Seguramente que, em relação à eficácia das vacinas, prometeram bem mais do que aquilo que elas nos deram: a imunidade de grupo; o fim das restrições e o regresso à normalidade; a suficiência das duas doses; um nível elevado de proteção contra a infeção.

Ficou a proteção contra a doença grave e a morte. Já é muito bom, mas é também uma lição de humildade!