“Numa epidemia a morte é desvalorizada. Porque se não desvaloriza no nosso quotidiano, que é como se houvesse também uma epidemia, embora ao retardador?“, Vergílio Ferreira

(Dos ecos do futebol, mais do que a pesada derrota com o Manchester City, fica-me o desalento da quase total impunidade quanto ao que se passou no estádio do Dragão. Sabemos praticamente todos que o futebol não é, apenas, o que se passa nas quatro linhas mas tornar as manobras de bastidores no espectáculo principal é algo que mesmo os mais ingénuos não podem aceitar. Continuem a fazer batota porque é um hábito antigo mas, ao menos, escondam-na e não a esfreguem na nossa cara.)

Foi notícia do Expresso que, segundo um inquérito da Fundação Gulbenkian e da Universidade de Lisboa, no último ano, 61% dos portugueses não leram um único livro.

Perante os últimos acontecimentos no futebol, tenho-me lembrado do meu avô paterno, também adepto do Sporting, que ia sempre para o estádio munido de um jornal para o abrir e ler, em forma de protesto, quando a exibição do seu clube não lhe agradava.

Actualmente, os mesmos protestos, sejam eles contra a nossa equipa ou contra o adversário, terminam sempre em pancadaria e muitos palavrões, normalizando-se o mal. A seguir, nas ditas instâncias desportivas, é simulada uma justiça que dessa apenas tem o nome, sendo antes movida por interesses que nada têm que ver com a verdade, nem sequer a que diz ser a desportiva.

O problema, contudo, não se circunscreve ao futebol. O espaço que, antes, era reservado à cultura foi ocupado por mensagens instantâneas nas redes sociais ou por programas ditos da vida real. Os livros foram substituídos por vídeos no Tic Toc ou no Instagram, as conversas entre amigos por posts no mural de cada um e as horas de leitura pela assistência de programas televisivos que nada de bom acrescentam (e quem não tenha assistido a um episódio que atire a primeira pedra). Ignorantes mas contentinhos pela miséria alheia não temos sequer a capacidade de perceber que esta é (também) nossa.

O preço que todos estamos a pagar é o da bestialização da espécie humana, repleta de high tech mas completamente desprovida de princípios básicos, inundada de informação mas sem qualquer formação sólida. Dizem-nos mais instruídos que nunca mas nunca estivemos tão pobres quanto ao que o dinheiro não pode comprar.

A epidemia do fast foward, em que tudo é efémero, incluindo a dignidade, a amizade e o amor, valores fundamentais da espécie humana, numa espécie de onda que dizima pessoas enquanto outros assistem no sofá, trará mais gravosas consequências num futuro próximo do que a covid-19 (não negando eu a gravidade desta última). A quebra dos valores mais basilares, em que tudo se reduz a uma turba que ora crucifica pessoas, ora as eleva quase ao estatuto de um deus, radicará na transformação da humanidade numa selvajaria virtual.

Às vezes, a pior solidão já nem é a que sentimos numa multidão que nos acotovela mas a que é vivida ao som dos avisos de notificações. Vale a pena pensar sobre isto porque o caminho é de uma morte anunciada dos valores que nos trouxeram até aqui e, por enquanto, ainda não há máquina que substitua a pessoa nem mundo virtual que substitua uma conversa.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.