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Oriente

Sim, ao contrário do que muitos querem vender, principalmente aqueles que fazem do conflito histórico e racial o seu modo de subsistência, e de um entendimento politicamente correto que nos tortura há quase 30 anos, o património mais importante que Portugal deixou ao mundo, da sua epopeia colonial ( não tenhamos medo das palavras) foi a mestiçagem cultural.
14 Dezembro 2021, 07h15

Já não recordo bem como mas, quando viajava em férias para Lisboa há uma semana, deparei-me com uma notícia de março deste ano, dando conta da morte de Aida de Jesus.

Aida de Jesus, ou simplesmente a “tia Aida do Riquexó”, numa alusão ao restaurante típico de comida macaense que era sua propriedade, e onde trabalhou até bem perto do fim, faleceu com uns invejáveis 105 anos, e constituía-se como uma das figuras mais típicas daquela Região Administrativa Especial da China, tendo-se tornado um símbolo da miscigenação sino-portuguesa.

Sim, ao contrário do que muitos querem vender, principalmente aqueles que fazem do conflito histórico e racial o seu modo de subsistência, e de um entendimento politicamente correto que nos tortura há quase 30 anos, o património mais importante que Portugal deixou ao mundo, da sua epopeia colonial (não tenhamos medo das palavras) foi a mestiçagem cultural. Sim, nós fomos cruéis como todos, mas fomos diferentes como só nós sabemos ser. O português, seja no período colonial ou na aventura da diáspora, é um indivíduo que se entrosa na sociedade de acolhimento, se acultura sem perder a sua própria cultura, que se cruza, se miscigena, que acolhe os elementos do local de destino, não deixando de preservar, até ao limite da sanidade, as tradições da “terrinha”.

Nós somos mesmo assim, do Minho à Madeira, por isso existe um português, ou alguém que se considera português, nas sete partidas do mundo. O Macaense é, portanto, o descendente da união entre os primeiros colonos portugueses que assentaram praça e arraiais naquele porto da grande China, e as mulheres orientais que os acolheram no seu seio, no seu regaço, constituindo hoje menos de 2% da população daquele território. Nos idos dos anos 90, um Portugal já imerso numa leitura neutral da herança cultural tentou deixar como legado o estatuto de macaense para todos aqueles que lá viviam, o que, feliz e ironicamente, foi recusado pelos locais.

Mas Macaense não é apenas um testamento genético. É a gastronomia, própria, distinta da chinesa e cantonesa, e também da portuguesa, mas inaugurando o conceito de fusão entre todas estas. Uma vez no Oriente, os aventureiros portugueses pediam às suas mulheres que confecionassem os pratos típicos da Lusa pátria. As suas esposas, quando tentavam replicar tão exóticos petiscos, e utilizando ingredientes asiáticos face à ausência de equivalentes europeus, mal sabiam que estavam a fundar e a consagrar toda uma nova e distinta gastronomia e, por fim, um património cultural singular. O mesmo se passava com o idioma. A nossa Aida de Jesus era uma das últimas falantes do Patuá, o crioulo de Macau, que bebeu da  fonética e semântica da língua de Camões, de Confúcio, mas também do cingalês e dos idiomas dos arquipélagos malaio-indonésio-tailandês. Usada em casa, transmitida oralmente de mãe para filhos, o Patuá tornou-se uma língua de comércio com o passar do tempo, constituindo-se por fim na língua franca do Oriente até à fundação de Hong Kong, em 1842, que impôs o inglês naquelas paragens.

Ainda que a China tenha considerado o Patuá como seu património imaterial  em 2012, contavam-se como cerca de 50 os falantes deste tesouro cultural a viverem em Macau, talvez mais algumas centenas na diáspora. Com a morte da Tia Aida, carregando no exagero, serão agora 49. A morte da vetusta senhora soou como um alarme. É que até os seus descendentes, que se consideram portugueses, tenham ou não passaporte, falam o português. Reclamam para si o uso caseiro da língua de Pessoa e Camilo. Mas não o Patuá. Aqueles que buscam as raízes, ou que tentam preservá-la, fazem-no mais facilmente com a matriz, e não com os seus derivados.

O mesmo se passa em Goa, e nos restantes enclaves indianos outrora parte do Império. A gastronomia goesa, tão rica, tão saborosa, mas tão distinta da indonepalesa que comemos nos restaurantes por essa Europa fora, resiste com dificuldade na casa dos goeses de herança cristã. Como deixar cair o maravilhoso “Balchão”, uma maravilhosa carne de porco estupidamente picante, impossível de se provar na cultural indiana? E quem preservará o “Mandó”, uma espécie de fado dançado goês, que transporta consigo um legado de melodia, palavras, mas também instrumentos e indumentária próprios?

E o Konkani? A língua própria de Goa, cada vez menos falada.

Como referi anteriormente, aqueles que, buscando as suas raízes, ou procurando o seu ethos, e que querem (re)conetar-se com alguma ancestralidade lusa, podem procurar o português, ou as tradições de Portugal. Aliás, como bem sabemos até de um ponto de vista social, aqueles que vão ao encontro de um passado mais ou menos verdadeiro, buscam por uma  “pureza” cultural tão utópica como desajustada. E o que tem Portugal para oferecer, através dos institutos e fundações criados para o efeito, senão essa realidade luso-europeia? Mas, quem cuida do património crioulo? Quem preserva, divulga, consagra a sopa cultural que, na realidade, foi a nossa maior criação?

Porque não investe o nosso país a sério nessa preservação, de que nós somos verdadeiramente os maiores interessados?

Não será mais proveitoso investir a sério, não só na raiz europeia da portugalidade, mas nas ramificações mestiças que, essas sim, são um traço distintivo da nossa “viagem”? Porque não reserva o estado um valor na ordem dos 500 milhões, e deixem-me ser demagogo lembrando que seria apenas 1/10 da TAP ou do Novo Banco, para que esse envelope seja mesmo um investimento, com o retorno óbvio que o soft power cultural nos garante, no universo do século XXI. Um pequeno investimento nesta área não é investimento; é gasto. Serve para garantir uns empregos, na maioria dos casos a pessoas bem intencionadas mas cientes da impotência dos recursos. Sim, investir forte em recursos humanos que voltem a partir para aqueles destinos históricos, estudando, investigando e promovendo a nossa cultura, e a fusão que esta promoveu no contacto com as outras.

Deixemos o mundo celebrar a nossa mestiçagem, e não abandonemos o Oriente!

 

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