No passado, os polícias ingleses tinham a prática de soprar o apito cada vez que presenciavam o cometimento de um delito. Era essa a forma que tinham de avisar quem os rodeava, ou ia a passar, de que a justiça estava atenta e a atuar. A expressão, feliz, do tocador de apito (“whistleblower”, em inglês) consagra assim quem alerta a sociedade para o crime – e fez, felizmente, caminho.

Mark Felt, o homem que destapou o caso “Watergate”, que levou à demissão do presidente norte-americano Nixon, foi um tocador de apito. Nos últimos tempos, Edward Snowden foi outro. E a Justiça, nos países evoluídos e democratas, trata de proteger qualquer pessoa que, trabalhando no sector público ou privado, se expõe para dar a conhecer crimes, sejam eles de sangue, ligados a organizações mafiosas, ou económicos, o alimento da corrupção cada vez mais organizada à escala internacional.

A chamada delação premiada é um ramo desse caminho, já indispensável face à complexidade da teia, contra o qual só ouvimos quem está comprometido com a vigarice ou é, simplesmente, um instrumento útil ao som de utopias passadas.

O caso de Isabel dos Santos, em exibição, ensina-nos precisamente isso.

Não bastava todos, em Angola e Portugal, termos a intuição de que esta empresária crescera à sombra do pai presidente, roubando um país e todo um povo. Foi necessário que viessem a público documentos e se mostrasse um caso concreto: o do saque à Sonangol. É por aí que se promete destapar a trama de um sucesso empresarial tão comum aos filhos de quem está no poder em África, na América Latina ou em certas zonas da Ásia.

Os filhos do ditador Obiang, o mais velho dos quais é vice-presidente do governo do pai, na Guiné Equatorial, são outro belíssimo exemplo desta tragédia. E nunca devemos esquecer como, já no século XXI, José Eduardo dos Santos e Lula impuseram, para vergonha de todos, especialmente Portugal, a entrada dessa Guiné Equatorial na Comunidade de Países de Língua Portuguesa, que ainda se mantém. A teia em todo o seu esplendor!

Volto a Isabel dos Santos.

Os sinais sempre estiveram lá, mas não foram suficientes. Por cá, muitos dos crápulas portugueses que se dizem “gestores” procuraram, e alguns conseguiram, encostar-se ao dinheiro acumulado por Isabel dos Santos que, como todo o capital semelhante, precisa(va) de máquinas de lavar. Sociedades de advogados e empresas de certificação de resultados empresariais, vulgo consultoras, participaram também no festim, que começa a acabar em tragédia.

Há demissões. Um banco (o EuroBic foi gerado a partir do BPN, não se esqueça) que tenta vestir impermeável. Empresas, como a Galp e a NOS, a desligarem-se de mais um conglomerado “de sucesso”. O Banco de Portugal com as orelhas a arder. Até a coincidência de um oportuno suicídio.

E chegamos aqui, ao limiar da civilização. Se queremos um combate sério à corrupção temos de olhar para a delação e incentivá-la. Não há, hoje, como vemos pelo ‘Luanda Leaks’, mas já podíamos ter visto na derrocada da banca ou na tragédia da antiga PT, um verdadeiro combate ao crime se se quiser apenas usar os meios tradicionais da investigação, que, aliás, o poder político cerca com a influência e limita com a falta de meios. É preciso ter esta consciência precisamente agora, quando o governo de António Costa diz pretender finalmente combater a maior chaga da sociedade nacional, a corrupção.

E é nestas alturas que devemos prezar magistrados como Carlos Alexandre ou políticos como Ana Gomes, pessoas que não precisam de andar a rebate do apito. Trazem com eles a coragem de investigar ou denunciar. O sistema partidário português, mais cedo ou mais tarde, vai ter de se reorganizar em função deste urgente combate que se trava numa das fronteiras da Democracia.