Ontem, dia 28 Abril, passaram-se 130 anos (1889) do nascimento de António de Oliveira Salazar. Vem a propósito falar dos Filhos de Salazar, apesar da ideia muito vulgarizada de que sempre foi um celibatário inveterado, só com olhos para a Nação.

Entre esta noção fluida e a realidade, há todo um outro mundo das muitas namoradas, nacionais e estrangeiras, casadas e solteiras. Em muitos casos, “a nação” ter-lhe-á concedido tempo ou então ele permitiu-se ter tempo e muito para alimentar e usufruir desses namoros.

Apesar de não constar registo de filhos, a realidade é outra. Salazar tem dois filhos bem identificados, um casal com nomes muito sugestivos da sua devoção “cristã”, a Mariana e o Mariano, nomes certamente inspirados no culto mariano.

A Mariana e o Mariano têm uma longa história de vida, cada um, que se cruza e descruza e, sobretudo de condenação do outro, neste caso da outra, porque essa condenação foi mais presente da parte do Mariano.

História de vida que nos faz penetrar nos antros profundos do Estado Novo, vivido em Coimbra, da perseguição aos opositores e ao grande compadrio vigente no interior do regime, onde as ligações com Manuel Cerejeira (o cardeal todo-poderoso de então) não escapam.

Nada melhor para nos situarmos nesse ambiente profundo do Estado Novo do que ler “Os Filhos de Salazar”, de António Breda Carvalho, onde a Mariano e o Mariano aparecem bem fotografados. O Mariano foi pr’a padre, como se diria na minha terra. A Mariana tornou-se uma jovem rebelde lá pelos ambientes de Coimbra, desafiando “tudo o que é sagrado para o fascismo e para a Igreja”.

Porquê Coimbra?! Coimbra, o berço do Centro Académico da Democracia Cristã (CADC), um autêntico viveiro de gente importantíssima do Estado Novo, a começar por Salazar e Cerejeira.

Aqui aconteceram lautos almoços, bem regados, na vivenda do Reitor da Universidade de Coimbra, ele também do CADC, com as presenças de Salazar e Cerejeira, as forças vivas da Cidade, Governador Civil, Presidente de Câmara, onde Salazar muitas vezes anunciava várias das suas criações fascistas como a Mocidade Portuguesa ou a Obra das Mães, por vezes com a presença desalinhada de um advogado, irmão da dona da casa.

O Mariano era filho do Reitor da Universidade de Coimbra. A Mariana, filha de um major aviador da Força Aérea da base de Sintra, de nobres tradições republicanas, morando o Major e o Reitor em vivendas contíguas para os lados do Penedo da Saudade. As suas posições políticas eram ideologicamente antagónicas e de relações cortadas após o 28 de Maio de 1926.

À partida, filhos de pais diferentes, melhor de mães, porque sobre os pais parece existir alguma ambiguidade… o romance de António Breda não levanta todo o véu. Por circunstâncias da vida, a Mariana acaba por ser adoptado pelos pais de Mariano.

O Mariano era afilhado de Manuel Cerejeira. Desde novo mostrou grande vocação religiosa. Acabado o Seminário, Cerejeira já então Cardeal coloca-o em Rio Calmo, uma terrinha próxima da fronteira de Espanha, a seu pedido, mas contra a vontade dos pais que olhavam para o seu rico-filho como um segundo Cerejeira. O jovem padre por lá vai exercendo o seu múnus espiritual de forma que desagradava as figuras gradas da terra, o presidente da Câmara, o engenheiro de uma grande e única fábrica de produtos lácteos, o sargento da GNR e o provedor da Santa Casa.

O padre começa por ajudar os camponeses trabalhando na terra com eles. Também monta com o professor da terra (uma pessoa tida por desafecta ao regime) um curso de alfabetização de adultos a funcionar em instalações públicas, o que lhe custou resmas de papel selado na obtenção da autorização e umas cunhas do pai junto do ministro e uma biblioteca paroquial com muitas dificuldades, contrariando sempre a vontade dos ditos senhores.

Uma vez autorizada a educação de adultos, é chamado ao sargento com a recomendação expressa de vigiar as aulas do professor e de o informar. Ao contrário do que previam as “digníssimas” autoridades houve muita aceitação e quase toda a gente analfabeta, mais de 80%, acabou por ficar minimamente letrada.

A Mariana, por seu lado, começou a exigir dos pais adoptivos, vida própria, saídas nocturnas não condizentes com as boas maneiras sociais, até que descobre a sua vocação de aviadora. Difícil para uma mulher. Mas tanto insistiu que o reitor lá consegue através de Salazar a sua inscrição na base aérea. Uma vez habilitada, Mariana resolve imitar o pai e pega num avião da base e vai a Coimbra fazer piruetas acrobáticas. Sobrevoa a Universidade, passa por baixo da ponte do Mondego. Tal como o Major seu pai, mas com sucesso, pois o pai estatelou-se no Mondego.

Mariana, de regresso a Sintra, vai bater à prisão de Caxias. Salazar admoesta o reitor que fica atemorizado. Salazar diz-lhe mesmo que era a última vez que intervinha. Depois de algum tempo na prisão de Caxias, Mariana volta para Coimbra e mais algumas peripécias sucedem-se como professora e Mariana é corrida de professora do Liceu. A solução foi a de sair da vivenda por imposição do Reitor que sentia o cargo em perigo.

Mariana vai viver para uma quinta nos arredores, de herança dos avós paternos e aí começa a integrar-se na vida da cidade, uma parte de boémia e uma de cultura. Nesta sua vida cruza-se com Mariano de férias em Coimbra que alinha numa noite de boémia com ela. Na sua casa, Mariana desenvolve debates nocturnos frequentes de discussão e leitura e passa a ser vigiada pela PIDE. Uma noite, a casa é assaltada e Mariana é levada para a Antero de Quental, sede da PIDE, onde é muito maltratada, chicoteada, mas sempre oferecendo resistência. Depois de alguns dias de prisão, volta a sua casa.

Mariano lá continua cada vez mais envolvido nas suas iniciativas, não se deixando dominar pelos senhores da terra, até que pela tamanha exploração dos trabalhadores surge uma greve na fábrica de lacticínios, tendo como mentor o professor, a que aderem os trabalhadores em elevada percentagem. Nos reencontros, a GNR mata a principal activista e as prisões não se fizeram esperar. O professor é preso e levado para Lisboa, sendo Mariano também interrogado.

Mariana continua a sua vida de Coimbra e a PIDE acaba por desistir. No entanto, era uma pessoa muito conhecida e muito considerada na oposição. Acaba por ser contactada por um dirigente clandestino do PC (o irmão da mulher do Reitor, desaparecido há muito, também depois de ser preso e deportado) e aceita na quinta a instalação de uma tipografia clandestina. A situação foi correndo até a quinta ser assaltada e aqui Mariana é presa e vai para Caxias juntamente com alguns dos elementos da tipografia e por aí fica uns anos.

Os “Filhos de Salazar” é pois um excelente romance em que se apreende o que foi o mundo do Estado Novo.

Acompanhando as vidas destes jovens – como se lê na contracapa – “assistimos a um retrato vivido do Portugal do Estado Novo: de um lado os representantes do poder, os cidadãos fascistas e a temível PIDE; do outro os inimigos do regime, incluindo os comunistas na clandestinidade”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.