O “Príncipe” de Maquiavel é uma obra notável. Escrita no meio dos jogos políticos da corte de Florença, elucida-nos sobre formas de construção e sobrevivência política, cuja lucidez e criatividade permanecem vivas cinco séculos após a sua .

O desconfinamento trouxe-nos de volta a política com as suas virtudes e defeitos. O regresso da dialética do discurso e as cenarizações quase espontâneas, discreta e estrategicamente pensadas, recorda aquela obra que tão bem retrata comportamentos e deslumbramentos de governantes que se perderam na sua desmesurada ambição.

Depois de semanas sucessivas com a presença seletiva e diária do primeiro-ministro – que nos deu conta do diagnóstico, apresentou a receita e nos preparou para a recuperação do país – António Costa faz o que quer e ainda lhe sobra tempo. Tempo para ensaiar uma rocambolesca peça de teatro, indutora da continuação da crise. No palco do Parlamento, demonstrando menor domínio sobre o seu próprio Governo, assumiu algo para depois ser obrigado a um ato de contrição público, apenas porque não sabia que o seu ministro das Finanças tinha cumprido a lei do Orçamento do Estado.

Estranhamente desconhecedor do guião, o Presidente da República confrontado com um desafio de recandidatura, remeteu-se prudente ao silêncio, assobiou para o lado e endossou a culpa para o Terreiro do Paço. Mário Centeno, protagonista de segundo plano, depois de reabilitado engoliu a desfeita a troco de uma promoção. Salvaguardando o futuro, assumirá a tarefa do orçamento suplementar, agora, para não arcar com o défice fenomenal depois.

Em polos opostos, os partidos à direita e à esquerda, anestesiados pela moléstia e ainda na primeira fase de desconfinamento deixam que o Bloco Central floresça, agora entre Marcelo e Costa. Alcançado o pico da pandemia preparam-se os atos subsequentes, os que perderam protagonismo ensaiam apressadamente candidaturas presidenciais na busca da vã glória de recuperar terreno e fôlego que lhes assegure regressar a combate. Prontos para sufragar individualidades incómodas que se pretendem afirmar num reduzido espaço que aqueles titulares de órgãos de soberania vão deixando vazio.

Oportunidade para uma luta contra o sistema e a oposição do “mainstream”. Está lançado o desafio presidencial que preencherá o espaço pós-restrições, no processo de retorno aos hábitos políticos antigos. Oportunidade para uma sucessão de candidatos que tenderão a radicalizar o discurso para se distinguir dos que ocupam o centro da discussão política.

Em paralelo, movimentam-se os partidos que temem perder presença. O PCP buscará na rua o alargamento da conflitualidade social e a Festa do Avante será apenas mais um pretexto na construção do protesto contra o orçamento de 2021. Ano de presidência europeia de Portugal, ano de eleições autárquicas e ano de potencial remodelação de um governo que se mostra cansado antes de começar a governar. O Bloco, espreitando o acesso ao governo, ensaiará discurso de crítica severa e interessante disponibilidade.

Os jogos florentinos de poder começaram, porventura, demasiado cedo. Quem os lançou não poderá lamentar os resultados obtidos. Tal dizia Maquiavel, um governante que não calcula uma determinada ação, pode ver o poder e a autoridade fugir-lhe. Ou perder a sua base de apoio natural e fiel. Tal como o surgimento de um vírus, também o resultado político destas ações pode ser imprevisivelmente doloroso.