Durante anos trabalhei lado a lado com um colega, que aos poucos se foi tornando um grande amigo. Ele era economista e eu jurista. Provocámo-nos reciprocamente, mas ele – mais sabedor – ensinou-me muitas coisas.

Sempre foi um trabalhador competente e incansável e nunca experimentou as luzes da ribalta. Consciente do seu valor, dizia muitas vezes que, nesta vida, as pessoas se dividem em duas grandes categorias: os pianistas e os carregadores de pianos.

Ele, obviamente, seria um carregador de pianos.

Todos sabemos que os pianistas, quando chegam ao palco, são imediatamente recebidos com uma ovação. Ainda não tocaram uma única nota e já recebem palmas. Porém, se o piano não estivesse lá, em cima do palco, intacto, reluzente e devidamente afinado, não havia espetáculo para ninguém. Nem o pianista tocava, nem o público se deleitava com a sua performance.

Ninguém pensa no trabalho que deu transportar o piano, que é uma peça delicada e que até pode ter vindo de muito longe. O trabalho do carregador de pianos é invisível. Por isso, não obstante o tempo, o esforço, o zelo e a perícia aplicados, é como se o carregador não existisse.

Não recebe palmas, não as espera receber um dia. Provavelmente, nem saberia o que fazer com elas. Mesmo quando o pianista partilha os aplausos, chamando este e aquele ao centro do palco, nunca chega a vez do carregador de pianos.

Vem esta estória a propósito da importância crucial de restaurar a dignidade do trabalho, de todas as profissões e formas de emprego, sem exceção. Porque todos, com o seu trabalho diário, contribuem ativamente para o bem comum. As pessoas não precisam apenas de um salário justo e de condições de trabalho condignas. Precisam do reconhecimento dos outros e de sentirem que o seu esforço é valorizado.

De certa forma, precisam de um pouco de palmas, sob a forma de um bom dia, um obrigado, dois dedos de conversa, um elogio ou uma palavra de encorajamento.

Numa sociedade que se indigna tanto com palavras discriminatórias, é extraordinária a ligeireza com que  ainda se fala de trabalhadores indiferenciados, de pessoas sem qualificações ou de trabalhos que ninguém quer fazer (e que, por isso, ficam para os imigrantes). Ou a frequência com que se ouve que fulano tem um trabalho sujo ou que beltrano finalmente arranjou um emprego decente. E como pode aceitar-se o tom depreciativo adotado relativamente aos empregos das nove às cinco, às caixas de supermercados ou aos empregados dos call centers?

O espaço público está hoje dominado pela retórica das qualificações, da diferenciação, da excelência, do talento, da inteligência emocional e das soft skills. Do diabo a sete e, claro está, da meritocracia.

Conquanto transversal a boa parte do espectro político, a mensagem meritocrática é perversa, enquanto princípio geral de organização da sociedade. Ela ignora olimpicamente a lotaria social e esquece como é difícil quebrar os ciclos de pobreza, ao mesmo tempo que dá por adquirido que todos começam a corrida na mesma casa de partida e que o elevador social está a funcionar.

Os chavões da meritocracia incutem nas pessoas a ideia de que, se trabalharem com afinco e forem criativas, podem ter um emprego melhor e subir na vida. Mas como tal não acontece na grande maioria dos casos, a meritocracia acaba por dizer aos pobres que eles não progridem na vida porque são preguiçosos e não têm talento – por isso, merecem continuar a ser pobres.

Não me lembro de alguma vez ter ouvido um pobre a defender convictamente a meritocracia. Os meritocratas encartados estão todos muito bem na vida!