[weglot_switcher]

Os reis que passeiam nus

O poder local e autárquico, dado às suas especificidades e competências e à maior proximidade com os cidadãos são essenciais nessa tarefa de intervenção ou mediação das transformações sociais, económicas e políticas que acontecem nos territórios que habitamos.
20 Julho 2021, 07h15

Acredito que o primeiro passo para apontar as soluções políticas para o nosso futuro coletivo passa, necessariamente, pela escuta das reais necessidades das pessoas, nomeadamente as que atravessam inúmeras dificuldades na atualidade. O poder local e autárquico, dado às suas especificidades e competências e à maior proximidade com os cidadãos são essenciais nessa tarefa de intervenção ou mediação das transformações sociais, económicas e políticas que acontecem nos territórios que habitamos.

A representatividade local, desde os tempos medievais, teve por objetivo ser porta-voz de todos aqueles que nunca tiveram voz junto dos centros de decisão, nem foram chamados a decidir sobre qual o desenvolvimento que ambicionam para o espaço que habitam. O poder local deve por isso, ter como desígnio, contribuir para a melhoria da qualidade de vida de todos os habitantes de uma freguesia ou município.

Carvalho (2021a), a propósito da organização concelhia e da administração local medieval, refere a partir de Mattoso (1997) que, durante o século XIII “a autoridade do rei evolui de uma supervisão muito ténue sobre o reino até uma intervenção minuciosa, mas desigual, conforme a jurisdição predominante em cada lugar”, por isso o sucesso do exercício de uma administração local e o ganho de maior autonomia em relação a um poder central estava dependente, além da “personalidade jurídica” do território, da própria legitimidade da autoridade reconhecida na esfera local e na capacidade desta influenciar a coroa. Porque, como destaca Carvalho (2021b), a partir de Mattoso (1997), Serrão e Oliveira Marques (1996), “o sancionamento régio que começou por apenas delimitar os direitos e obrigações das comunidades para com o monarca ou senhor, e progressivamente tornou-se um meio de centralização régia”. A construção política contemporânea, ainda é talvez pouco distante desta realidade medieval, onde uns se sujeitam e outros estão sujeitos.

Se no “Ancien Régime” (Tocqueville, 1856) o poder económico estava submetido à autoridade do poder político, já na civilização contemporânea, ao invés, vemos o poder político (eleito) submisso aos interesses particulares de alguns e à vontade do poder económico, em vez de se dispor em prol do bem comum e da vontade popular.

Devemos, contudo, ousar acreditar que o político é (ou deve ser) o fiel depositário da vontade popular, mas, por isso mesmo, a legitimidade das urnas não pode justificar a ausência de diálogo com as pessoas. A proximidade na ação política deve por isso ser demonstrada, quotidianamente, na capacidade de escuta de todos os cidadãos, daqueles que contribuem para uma eleição, daqueles que se opõem a um qualquer poder instalado e daqueles que se abstêm.

Schopenhauer terá dito a este propósito que, “para nos tornarmos tolerantes com opiniões contrárias às nossas, basta lembrarmo-nos, que nós mesmos, já mudámos de opinião várias vezes”. A tolerância é o sublimar da construção do estado de direito e de sociedade democrática, que persistentemente, todos devemos defendê-lo.

Mas, a tolerância, não pode significar ceder ao medo; não pode significar a perda da liberdade; não pode significar a perda da consciência. Porque como terá dito, Étienne de La Boétie. no “Discours de la servitude volontaire” (1563) “para conservar uma nova tirania, o melhor meio é aumentar a servidão e afastar tanto dos súditos a ideia de liberdade que eles, tendo a memória fresca, começam a esquecer-se dela”.

O estado de direito e a democracia Portuguesa são uma progressiva construção política, social e humana, iniciada com a revolução liberal de 24 de agosto de 1820, continuada na implantação da República a 5 de outubro de 1910 e retomada com a conquista da liberdade a 25 de abril de 1974. Resultam, portanto, do exercício contínuo da cidadania, da qual não podemos abster-nos.

O sacrifício do “sangue de nossos avós”, derramado em sucessivas guerras civis, golpes militares e revoltas populares, teve por desígnio defender os princípios e valores universais atribuídos ao humanista cristão Étienne de La Boétie (1530-1563), a trilogia de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” – que provavelmente retomará as virtudes teologais do catolicismo romano e os escritos de Santo Agostinho.

De acordo com Poiares (2005), a partir de Miranda (1974), refere-se que os valores desta trilogia, já eram considerados em vários documentos do pré-constitucionalismo, nomeadamente a “Magna Charta Libertatum” (1215), a “Petition of Right” (1628), o “Habeas Corpus Act” (1679), a “Bill of Rights” (1689), o “Act of Settlement” (1701) entre outras declarações de direitos.

Quase um século mais tarde, tais princípios serão novamente proclamados por vários pensadores, nomeadamente, Robespierre (1790), René Louis de Girardin (1791), marquês de Vouvray e Antoine-François Momoro (1793), sendo adotados como lema da República Francesa (1848) (Wikipédia, 2020), inspirando as revoluções liberais por toda a Europa, que procuraram instituir um novo modelo de organização política, assente no constitucionalismo.

Poiares (2005) refere que, “a vontade de mudar (…) não foi apenas uma vontade derivada da consciencialização dos políticos bem pensantes” foi também, fruto da “vontade dissonante” para com as antigas verdades institucionalizadas.

Hoje tornamos a ver ressurgir no seio das nossas sociedades contemporâneas, ditas livres e democráticas, novos arautos do “Ancien Régime” (Tocqueville, 1856). Os antigos partidos moderados do centro político desapareceram, radicalizaram-se, tornando-se numa direita populista, no pior sentido do termo, que toma o ódio aos pobres e excluídos, o racismo e a xenofobia como argumentos da sua prática discursiva e da propaganda mediática.

Os avanços civilizacionais, ganhos pelas classes trabalhadoras, pelos mais pobres e desprivilegiados voltam a ser postos em causa pelas elites que se perpetuam no poder, quer por aquelas novas elites, que em aparente litígio com as elites dominantes, querem substituí-las e entronizar-se no poder.

E, os velhos “donos disto tudo” – os mesmos de sempre – muito provavelmente continuarão a sê-lo.

Nos estados totalitários as estruturas de poder confundem-se, partido e governo tornam-se um só e, infelizmente, hoje ainda persistem essas hegemonias em plena democracia. Não nos resignemos.

Talvez falte Amor na política. Talvez falte o Amor pela causa pública e daí vemos justificada a falta capacidade das elites dominantes assumirem os compromissos necessários ao nosso bem comum.

E se só somos verdadeiramente livres quando amamos – de acordo com as palavras de Santo Agostinho – então, podemos concretizar este Amor fazendo-o chegar ao coração de todas pessoas, para que, verdadeiramente, aconteça democracia, participada, a partir do lugar onde ela nasceu: a Cidade.

Referências:

Carvalho, Diana. (2021a). Terras, Julgados e Concelhos medievais. As bases da administração local no século XIII. A Pátria – Jornal da Comunidade Científica de Língua Portuguesa. Funchal: Ponteditora. Disponível em: https://apatria.org/cultura/terras-julgados-e-concelhos-medievais-as-bases-da-administracao-local-no-seculo-xiii/

Carvalho, Diana. (2021b). Criação e reconhecimento formal dos primeiros municípios portugueses. A Pátria – Jornal da Comunidade Científica de Língua Portuguesa. Funchal: Ponteditora. Disponível em: https://apatria.org/cultura/criacao-e-reconhecimento-formal-dos-primeiros-municipios-portugueses/

La Boétie, Étienne de. (1563). Discours de la servitude volontaire. [s.n.]

Mattoso, J. (1997). Os Concelhos. In Mattoso, J., História de Portugal. A monarquia feudal (1096-1480) (p.169-197). Vol. 2. Lisboa, Portugal: Editorial Estampa.

Miranda, Jorge. (1974). Textos constitucionais estrangeiros. Lisboa: revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (suplemento).

Poiares, Carlos A. (2005). Liberdade, Igualdade e Fraternidade: Ontem e Hoje. RES-PUBLICA – Revista Lusófona de Ciência Política e Relações Internacionais 2005. (1). pgs. 155-164

Serrão, J.; Marques, A. H. De Oliveira (1996). 2.2.3. A Vida Concelhia Por Entre o Normativo e o Simbólico. In Nova História de Portugal. Portugal em Definição de Fronteiras (1096-1325). Do Condado Portucalense à Crise do Século XIV (p. 560-567). Vol. III. Lisboa, Portugal: Editorial Presença.

Tocqueville, Alexis. (1856). L’Ancien Régime et la Révolution. [s.n.]

Wikipédia. (2020, junho 4). Liberté, égalité, fraternité. Wikipédia, a enciclopédia livre. Obtido de: https://pt.wikipedia.org/wiki/Libert%C3%A9,_%C3%A9galit%C3%A9,_fraternit%C3%A9

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.