Paralelos cipriotas

Para a República do Chipre continua a estar em cima da mesa a reposição da sua integridade territorial, do lado do Chipre do Norte estará sempre em causa o reconhecimento e igualdade de ambas as etnias na gestão da coisa pública.

No passado domingo realizou-se a primeira volta das eleições presidenciais no Chipre. País que surge do cruzamento de muitas culturas e com um passado colonial recente, cuja independência do Reino unido data de 1960, vive ainda hoje a silenciosa dissensão fruto da invasão turca da República do Chipre que deu origem a um território que se autodenominou como Chipre do Norte.

O Chipre do Norte é apenas reconhecido pela Turquia e pela República Islâmica do Paquistão, enquanto a República do Chipre é reconhecida internacionalmente e membro de várias organizações internacionais, incluindo a União Europeia desde 2004.

Existem no Chipre nove pontos de passagem, dividindo a República do Chipre do Chipre do Norte. O paralelo mais relevante situa-se em Nicósia, a capital. Divididos desde 1975, estes territórios estiveram completamente isolados entre si entre 1975 e 2003, quando foi autorizada a passagem de cidadãos cipriotas gregos para o lado turco e cipriotas turcos para o lado grego.

Se compararmos com o Muro de Berlim, que existiu entre 1961 e 1989, percebemos que Nicósia suplanta Berlim, com 48 anos de divisão. Uma divisão que permanece e não desaparece da memória coletiva nem do exercício de paralelismos com situações mais atuais, mas cujos desenvolvimentos parecem reconhecer-se no que se passou neste país insular mediterrânico, tantas vezes esquecido.

Passados vinte anos sobre a abertura da passagem entre a República do Chipre e o Chipre do Norte, muitos foram aqueles que recusaram fazer esse exercício de passagem para o outro lado. Mais do que a dificuldade em reconhecer esta situação política como a situação final para o seu país, subsiste a memória de uma identidade partilhada entre cipriotas gregos e cipriotas turcos que se estende para a partilha também do espaço.

Na memória de muitas destas pessoas ainda se encontra o transporte forçado de cipriotas turcos que foram obrigados a ir para o Chipre do Norte e de cipriotas gregos que tiveram de ir para o território encurtado da República do Chipre. A gestão da memória é também um trabalho político a fazer neste contexto.

País suspenso

A República do Chipre continua a ser um país suspenso, ainda com uma situação territorial indefinida e com um processo de conversações de paz que terá que ser retomado. Na verdade, as conversações foram interrompidas em 2017, mas existe alguma esperança que o novo presidente possa retomá-las, no contexto do regime presidencialista que caracteriza a República cipriota.

Os resultados da primeira volta das eleições presidenciais deram a dianteira a Nikos Christodoulides, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, que foi durante uma boa parte da campanha eleitoral o favorito, com 32%, e a segunda posição a Andreas Mavroyiannis, diplomata de carreira, que obteve um resultado extraordinário face às previsões das sondagens durante a campanha, com 29,6%. A abstenção ficou pelos 28%. Fará, decerto, parte da estratégia dos candidatos conquistar para a votação não só os votos deixados pelos candidatos que não passaram à segunda volta, como incentivar alguns abstencionistas a irem às urnas.

Qualquer que seja o vencedor, dada a sua experiência diplomática, parece ter as condições para voltar a propor um regresso à mesa das negociações para definir qual o futuro do país. Para a República do Chipre continua a estar em cima da mesa a reposição da sua integridade territorial, do lado do Chipre do Norte estará sempre em causa o reconhecimento e igualdade de ambas as etnias na gestão da coisa pública.

Contudo, o contexto para retomar as conversações é particularmente sensível. Do lado turco, Erdogan, no poder desde 2003, como primeiro-ministro, e depois em 2014 como Presidente da República, irá enfrentar eleições. Para além de completar 20 anos no poder, Erdogan também terá de lidar com a o centenário da Revolução Kemalista, ocorrida em 1923 e que inaugurou o poder laico na Turquia, tornando-a uma república organizada em torno do Estado moderno, em que o secularismo e o nacionalismo foram as bases fundacionais do novo regime.

É debaixo do movimento kemalista que se definem as fronteiras da Turquia, fazendo-a recuar em alguns territórios de proximidade, como a Síria, e que se dá a troca de cidadãos de origem grega, residentes no novo território turco, pelos cidadãos turcos a residir na Grécia. Estes refugiados serão integrados nas novas fronteiras de ambos os países, mas as disputas territoriais e de influência dos dois países não terminaram com este acordo. A acrescentar a todas estas variáveis, o terrível terramoto que assolou a Turquia que trará, decerto, consequências sociais e políticas ainda imprevisíveis.

Do lado grego, avizinham-se eleições que tornam muito delicado qualquer envolvimento numa negociação deste tipo. É certo, porém, que quer a Turquia quer a Grécia permanecem como elementos chave em qualquer negociação entre os dois lados da ilha cipriota.

Os novos paralelos

No caso cipriota não é difícil ver um paralelo entre a situação vivida na Ucrânia e aquela que o Chipre viveu. A Ucrânia, independente desde 1991 como resultado da fragmentação da União Soviética, vê o seu território invadido pela Federação Russa, ou seja, 21 anos depois. A República do Chipre, independente do Reino Unido em 1960, é invadida em 1974 pela Turquia, ou seja, 14 anos após se ter tornado Estado.

O processo de independência do Chipre e as condições para a mesma apresentam algumas especificidades que vale a pena notar. O Reino Unido permaneceria com uma parte do território, onde tinha bases militares, e que permanecem como território britânico ainda hoje, apesar de permitirem a circulação de pessoas. Reino Unido, Grécia e Turquia ficavam como garantes da transição de colónia para país independente, com direito de intervenção em caso de necessidade de reposição da ordem política.

Durante o colonialismo britânico, que terminara com a integração do Chipre no Império Otomano, houve uma hábil associação do poder colonial ao reforço das elites gregas, enquanto também alimentava as fações mais extremistas de origem turca. Na sua ideia de dividir para reinar, foi preparando o território para uma transição mais difícil e complexa. Findo o colonialismo, a recém-independente República do Chipre tem de lidar com a existência de duas etnias que, embora convivendo, desempenhavam papéis diversos na sociedade cipriota. As Forças Armadas, protagonista determinante para esta história, eram dominadas pela etnia grega.

Após o Golpe Militar na Grécia, houve a mobilização dos militares cipriotas para que também provocassem um Golpe Militar no Chipre e tomassem o poder. Instados pelas Forças Armadas gregas e crentes no seu apoio, as Forças Armadas cipriotas desencadearam um golpe de estado. Como resposta, a Turquia interveio sob o argumento de salvaguarda da população cipriota de origem turca. A operação militar ocupou o que hoje constitui o denominado Chipre do Norte. A Grécia enviou apoio militar para secundar os golpistas cipriotas.

Pela primeira e única vez na história, duas potências da NATO envolveram-se numa guerra de proximidade diretamente, confrontando-se. A solução encontrada, como sabemos, foi a divisão da ilha, com a criação de um território autónomo, cuja independência é apenas reconhecida pela Turquia e Paquistão.

O argumento para a invasão da Turquia relativamente ao Chipre é muito similar ao fundamento usado pela Rússia para invadir a Ucrânia: proteger os cidadãos da etnia daqueles países e pôr termo a tomadas de poder consideradas ilegítimas (é de notar que a Federação Russa nunca reconheceu a Revolução de Maidan como legítima).

Naturalmente, estes paralelismos tornam evidente que a repetição de intervenções externas em países onde existe diversidade étnica não é apenas uma coincidência.

A segunda volta

Na campanha eleitoral da primeira volta das eleições presidenciais, os temas centraram-se na corrupção, inflação e migração, dado que a República do Chipre tem o índice mais elevado de migrantes e refugiados per capita de toda a Europa. Contudo, espera-se que na segunda volta sejam retomados temas de maior fôlego, como o desenvolvimento do país, a integração da diversidade e o regresso às conversações com o Chipre do Norte.

O caderno de encargos para o próximo presidente será pesado, política e economicamente. A inflação, a especulação imobiliária e a capacidade de atração de investimento externo produtivo e a pressão migratória condicionarão muito o sucesso político do próximo Presidente, que terá de procurar respostas para estas questões.

Do lado político existe, também, um contexto desfavorável: eleições nas potências estrangeiras que constituem parte interessada na solução negociada do Chipre (Turquia e Grécia), a Guerra na Ucrânia que, pela sua proximidade geográfica e económica (através do investimento), coloca pressão no país e a questão migratória, que muito preocupa os cipriotas neste momento.

O Chipre está numa encruzilhada, mas é a altura mais oportuna para sensibilizar, sobretudo os parceiros europeus, que ainda existem muros na Europa e que existe um país em espera para definir a sua situação política e identitária.

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