“Infelizmente, não podemos aliviar as famílias que estão a sofrer em Portugal” – Christine Lagarde, conferência de imprensa da reunião do BCE, 3 de maio 2023

As taxas de juro continuam a subir e, apesar das leituras que dão conta de que a pior fase da subida de taxas já passou, o impacte sobre os rendimentos das famílias tem sido significativo, e assim deverá continuar durante mais algum tempo. Em menos de um ano, a Euribor a seis meses passou de valores negativos para valores acima dos 3,7%, o que significa que para casos de contratos de crédito a 30 anos as prestações mensais, dependendo do prémio de risco (ou spread), podem ter subido mais de 60% nas revisões de taxa.

Este ciclo de acentuadas subidas das taxas de juro segue-se a cerca de sete anos de taxas nulas, ou negativas, neste indexante, criando uma falsa sensação de segurança financeira relativamente a esta questão. Este tempo seria mais que suficiente para virar o paradigma em Portugal, para passarmos a olhar para um sistema com maior peso de créditos de taxa de juro fixa, em detrimento do atual sistema com taxa juro variável.

Pode dizer-se que terá sido uma oportunidade perdida para resolver o problema estrutural do financiamento dos portugueses, que depois tem ramificações para o sistema bancário e impacto económico-social na sociedade portuguesa.

As Euribor ainda vão subir antes de baixar, e vão ficar elevadas em 2023 e 2024

O Banco Central Europeu (BCE) tem vindo a dar nota, nas últimas conferências públicas, que os países mais expostos a taxas de juro variáveis poderão registar fortes dificuldades em lidar com os aumentos que a autoridade monetária tem sido forçada a fazer, para contrariar a acentuada inflação que se fez sentir sobretudo em 2022. A mesma irá manter-se em níveis elevados durante este ano e, provavelmente ainda em 2024, apesar de já não ser expectável que se registem subidas significativas – a Comissão Europeia, nas previsões económicas de primavera, espera que a inflação fique em 5,1% em 2023, e 2,7% no próximo ano.

Isto significa que o BCE deverá sentir menor necessidade de subir mais a taxa diretora dos atuais 3,75%, mas, ainda assim, o sentido será de subida – o consenso dos analistas da agência Bloomberg indicia que deverão ainda registar-se mais duas subidas de 0,25% em 2023, para os 4,25%, devendo depois manter-se a este nível pelo menos nos primeiros meses de 2024, até começar a descer. Ou seja, os indexantes deverão acompanhar a evolução das taxas de referência da autoridade monetária.

Isto quer dizer que as taxas Euribor, as taxas de referência para os créditos à habitação que seguem a tendência das taxas de juro do BCE, e acrescidos dos prémios e risco, ou spreads, poderão atingir valores entre 4% a 5% e aí permanecer durante um período muito alargado. Pois, mesmo que o BCE comece a descer as taxas diretoras, serão necessários alguns meses para que essa decisão se reflita nos contratos dos portugueses, o que significa que provavelmente antes de 2025 qualquer alívio nos juros, será pouco visível para quem tem créditos na banca.

Portugal é uma exceção na Europa no que respeita ao uso de taxas variáveis…

Existe atualmente um elevado desequilíbrio em termos de contratos de crédito indexados às Euribor. Estima-se que em Portugal, cerca de 90% dos contratos de empréstimos para a compra de casa têm taxa variável, o que significa que apenas uma pequena parte das famílias fixaram a taxa do seu crédito à habitação. Estes valores comparam com a média de 41% de contratos com taxa fixa na zona euro.

Historicamente, Portugal tem tido sempre um peso bastante grande de créditos produzidos com taxa variável, o que representa uma exceção quando comparado com a prática comum no resto na União Europeia. França, que detém 90% dos empréstimos em taxa fixa, Alemanha e Holanda, são três exemplos de países onde a gestão de risco é real, enquanto Portugal, Espanha ou Itália são países onde a taxa variável tem, tradicionalmente, maior preponderância.

Apesar da produção de novos créditos ter mostrado uma mudança neste sentido, com Espanha sobretudo a alinhar-se pela média europeia (17,9%) ao ter cerca de 20% dos novos créditos estruturados com taxa fixa, Portugal continua a evidenciar-se como um dos campeões europeus na contratação de taxa variável, detendo 68% dos seus novos contratos indexados às Euribor.

Por outro lado, as maturidades, ou prazos de vida dos empréstimos, também são mais longos em Portugal do que na média da União Europeia. Em Inglaterra, o prazo médio está nos 25 anos. Na Alemanha, estendem-se entre os 25 e os 30 anos. E, em Portugal, de acordo com dados do portal ComparaJá.pt., cerca de 42% dos portugueses acabam por ter prazos de dívida que estão entre os 36 e os 40 anos.

Portugal é um dos poucos países que permite chegar aos 40 anos de duração neste tipo de empréstimo. Muito embora, neste campo, existam já restrições relativamente à idade, além de o Banco de Portugal ter apertado as regras para o crédito à habitação, permitindo que o prazo máximo de 40 anos de empréstimo só seja possível para clientes abaixo dos 30 anos.

… e um país com elevado nível de endividamento das famílias

Em Portugal, a dívida das famílias situa-se nos 63% do PIB (dados de 2022), o que é uma melhoria face a 2009 (onde atingiu valores na ordem dos 94% do PIB), mas que é ainda significativamente elevado. Deste bolo, os empréstimos hipotecários deverão representar cerca de 75% da dívida das famílias nos balanços dos bancos, enquanto os empréstimos ao consumo sem garantia representavam 10%. Também importa salientar que quase metade das famílias (45%) têm dívidas.

Segundo os resultados do último Inquérito à Situação Financeira das Famílias (ISFF), publicado pelo Banco de Portugal, a percentagem de famílias com dívidas aumenta com a idade até ao grupo etário 35-44 anos, e reduz-se nos grupos etários seguintes.

A queda do nível de endividamento das famílias nos últimos anos beneficiou significativamente da descida das taxas de juro desde 2013. Porém, essa tendência mudou muito no último ano, com a agressiva política monetária do BCE que, em menos de seis meses, elevou a taxa de juro do euro de 0% para os atuais 3,75% e, com isso, provocou uma escalada das taxas Euribor (que servem de referência aos créditos) para perto dos 4%, quando há menos de um ano era negativa.

Num ano, as prestações em Portugal podem subir de forma significativa

Ou seja, a subida poderá tornar-se um garrote para os rendimentos das famílias portuguesas. Uma primeira nota serve para recordar que os impactos da subida das taxas de juro em contratos de crédito indexados têm um efeito prolongado, uma vez que não são revistos todos os dias. A taxa é revista periodicamente, de acordo com o contratado, seja trimestral, semestral ou anual, para citar os mais frequentes. Isto significa que mesmo depois de as taxas descerem, há um período de espera para beneficiar desse movimento que pode durar até um ano.

Outro fator relevante a considerar é que os salários médios em Portugal têm tendência para subir pouco, visto que a economia portuguesa tem vindo a crescer abaixo da média europeia, fazendo com que Portugal seja um país com pouca capacidade para gerar subidas de rendimento das famílias, capazes de acomodar inesperadas subidas das despesas mensais. Em suma, as subidas dos custos com financiamento à habitação são mais complexas de absorver em Portugal do que em países onde a competitividade da economia é maior.

Se considerarmos um exemplo de crédito à habitação a 30 anos, de 150 mil euros, com prémio de risco de 1% (spread), o aumento da prestação em um ano terá sido de cerca de 302 euros mensais, ou 63%, e representando agora uma prestação de 778 euros por mês, quando um ano atrás, seria uma responsabilidade de 476,6 euros por mês.

Se também considerarmos que o ordenado médio bruto dos portugueses em 2022 foi de 1411 euros mensais, e que em março de 2023 este rendimento médio era 1543 euros mensais (OCDE), as conclusões são verdadeiramente elucidativas e preocupantes. Mesmo com o aumento salarial bruto, o impacte das despesas com financiamento corresponde, atualmente, a 50% do ordenado, quando antes seria 34%.

Acresce que Portugal é dos países do mundo onde existe maior tributação do fator trabalho, um dado que a OCDE destaca no seu relatório de abril, “Taxing Wages 2023”. Segundo o relatório, em 2022 Portugal era o 9.º (10.º em 2021), entre os 38 países membros da organização, com carga fiscal (IRS e contribuições para a Segurança Social pagos pelo trabalhador e pelo empregador) mais elevada sobre o trabalhador médio, com 41,9%, revelando uma ligeira subida (0,06%) face ao ano anterior.

Este é um dos fatores decisivos para que Portugal tenha registado uma perca de salário real de cerca de 3,5%, em 2022, apesar dos salários terem tido um aumento médio de 4,5% no ano passado.

‘Bottoms’ up’: é fundamental aumentar o peso da taxa fixa

Portugal perdeu uma oportunidade de proteger as famílias e o seu sistema económico, ao deixar passar quase uma década de taxas muito baixas, sem proceder a medidas estruturantes para promover a utilização de taxa fixa na contratação de créditos à habitação.

O país tem demasiado stock de dívida em estrutura variável (90%), a carteira de dívida hipotecária é ainda muito abrangente na economia portuguesa (45% das famílias têm dívida) e com maturidades elevadas (30-40 anos). Por último, a economia não tem crescimento sustentável, os salários perdem valor real, e, como tal, uma subida das taxas de juro mais acentuada elevará o nível de esforço para valores de grande complexidade, podendo criar tensões de caráter social muito graves.

Nos últimos três anos, foi bastante evidente que o BCE não iria manter os estímulos monetários, e os custos com a troca de taxa variável por taxa fixa – contratos swap – chegaram a atingir valores muito apelativos para se proceder a uma transformação do enquadramento nacional. Num país onde existe tanta preocupação com a proteção do pequeno aforrador, quase uma fobia, face a investimentos em bolsa, não deixa de ser estranha a ausência destas preocupações com o maior compromisso de vida que as famílias portuguesas realizam – a compra de habitação.

Na verdade, e dado o reduzido nível de literacia financeira no nosso país, é legitimo que o Estado regule no sentido de proteger os portugueses da complexidade das estruturas dos produtos financeiros, e sobre se têm conhecimentos e experiência para entender os impactes e riscos associados ao que subscrevem.

Mas, pergunto, naquele que é o seu maior e mais prolongado compromisso de investimento de risco, estarão os portugueses verdadeiramente protegidos e terão literacia financeira suficiente para entender os riscos associados à contratação de uma taxa variável por um período de 30 a 40 anos?

A resposta parece evidente. E não existem razões para que Portugal não avance no sentido de corrigir este problema estrutural, em vez de procurar soluções imediatistas e algo panfletárias, assentes apenas na popular solução de reduzir os lucros da banca para resolver algo que podia ter sido acautelado durante quase uma década de taxas próximas de zero, ou mesmo negativas.