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Prostituição: A batalha semântica, política e ideológica em torno do conceito de “trabalho sexual”

Debate na AML coincide com iniciativa da JS no sentido de regulamentar a prostituição, baseada da legalização do lenocínio. A utilização do conceito de “trabalho sexual” normaliza a prostituição como um negócio? É legítimo promover uma indústria de proxenetismo? A decisão de uma mulher se prostituir é tomada livremente?
1 Agosto 2018, 16h31

A Câmara Municipal de Lisboa (CML) convocou para o dia 9 de abril a primeira reunião da Plataforma Local na Área do Trabalho Sexual, com o objetivo assumido de “dar continuidade ao caminho que tem vindo a ser trilhado no domínio do trabalho sexual na cidade de Lisboa”. A utilização do conceito de “trabalho sexual” foi desde logo contestada por vários movimentos da sociedade civil, nomeadamente a Associação “O Ninho”, o Movimento Democrático de Mulheres (MDM) e a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres que, aliás, solicitaram então uma audiência ao presidente da CML, Fernando Medina (PS), para obterem esclarecimentos sobre a matéria em causa.

A audiência foi realizada com Ricardo Robles (BE), vereador com o pelouro dos Direitos Sociais (o qual entretanto apresentou a demissão, na sequência da revelação de que é proprietário de um edifício no bairro de Alfama destinado a alojamento local para turistas, em flagrante contradição com o respetivo discurso político), cujas explicações não convenceram os dirigentes dos referidos movimentos. Na sessão de 10 de abril da Assembleia Municipal de Lisboa (AML), Lily da Nóbrega, representante do MDM, argumentou que “a persistente utilização do conceito de trabalho sexual deixa claro que a Plataforma Local agora criada pela CML nada tem que ver com os direitos das pessoas prostituídas, mas sim fazer o caminho pelo facto consumado da discussão da regulamentação da prostituição no nosso país que necessita, para o efeito, da aceitação do referido termo”.

Mais, Nóbrega acusou o Executivo liderado por Medina de estar a “fazer o jogo dos lóbis pró-proxenetismo”, menosprezando assim o trabalho de associações como a MDM no combate ao flagelo da prostituição. “E o assunto não ficou esgotado nesse momento. Após ser retomado, novamente pelo MDM, na sessão de 26 de abril, Medina terá assegurado que a CML não havia mudado de posição em relação à prostituição e que tudo faria para que nenhuma associação fosse afastada da discussão”, relatou a publicação “O Corvo”.

Na sessão de 26 de junho, a tensão voltou a aumentar, com o PCP a apresentar uma recomendação para que a CML não utilize o termo “trabalho sexual”. O bloquista Robles ainda pediu a palavra e manifestou estranheza pelas objeções levantadas (questionou, aliás, com ironia, se passaria a ser repreendido quando utilizasse o termo), mas a recomendação seria mesmo aprovada, com os votos favoráveis do PCP e do PS. Na recomendação dos comunistas é sublinhado que “não se conhecia, até à data, nenhuma atividade, iniciativa ou programa da CML em que a mesma tivesse adotado o conceito de trabalho sexual”. Por outro lado, o PCP realça que a CML tem desenvolvido trabalho, ao longo dos anos, nestas áreas, “numa perspetiva totalmente contrária à subjacente no conceito de ‘trabalho sexual'”, através de acordos e protocolos estabelecidos com a associação “O Ninho” e o MDM, especificamente no projeto “Tráfico de Mulheres – Romper Silêncios”.

“Não se trata aqui de discussões ao nível da semântica, mas de escolher entre políticas autárquicas de intervenção ao nível da prostituição completamente diferentes: ou institucionalizar a violência, legitimando a prostituição como um trabalho e o proxenetismo como um negócio legal, ou rejeitar a exploração na prostituição e apoiar e proteger as pessoas prostituídas”, conclui a recomendação, que invoca também as Convenções da ONU sobre a “Eliminação de Todas as Forças de Discriminação contra as Mulheres e para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem”, ratificadas pelo Estado português. “Ora, a instituição do termo ‘trabalho sexual’ contraria os princípios das Convenções citadas”, advertem os comunistas.

A proposta dividia-se em dois pontos, votados em separado e ambos aprovados. O primeiro pedia que “o município, em todas as áreas de intervenção, não utilize o termo ‘trabalho sexual'”, tendo obtido apenas os votos contra do BE e de quatro deputados municipais independentes. O segundo pedia que “o município volte a recentrar a sua ação na área da prostituição na perspetiva do apoio e proteção às pessoas prostituídas”, no sentido de promover a formação e reinserção social das mesmas, tendo obtido apenas os votos contra do BE.

 

“Disseminação e vulgarização da exploração sexual”

Questionada sobre este debate semântico, político e ideológico, Lúcia Gomes, advogada e dirigente da associação “O Ninho”, começa por afirmar que “a polémica não é nova, é recorrente. Já em 2012 surgiu uma proposta pioneira de criação de uma safe house em Lisboa. À data, apesar do então apoio do BE e de algumas associações, foi possível travar a criação de um bordel na cidade de Lisboa que, basicamente, é o escopo desta nova proposta. Existem já a trabalhar em todo o país, com financiamento significativo do Estado, associações que promovem o conceito de ‘trabalho sexual’ e que agem sobre os alegados trabalhadores sexuais. Muitas vezes, à imagem do que acontece nos EUA e na Europa, com fundos destinados ao combate ao VIH mas que acabam por corresponder a uma agenda própria que é esta de disseminação e vulgarização da exploração sexual como ‘trabalho sexual'”.

Na perspetiva de Gomes, “a proposta que Ricardo Robles defende é uma espécie de papel químico do Regulamento de Meretrizes da Cidade de Lisboa, criado no século XIX, que previa bordéis diferenciados de acordo com a capacidade de compra do cliente, indo desde os bordéis de classe baixa até aos chamados bordéis de luxo, com controlo sanitário e registo das pessoas prostituídas, mas nunca dos clientes”.

“E este é o único propósito da proposta, legalizar o lenocínio e criar bordéis, desprotegendo totalmente as pessoas prostituídas porque as torna invisíveis ao fechá-las em quatro paredes”, prossegue. “Já existem muitos movimentos com a sua ação directa de acordo com a sua perspetiva sobre o ‘trabalho sexual’: regulamentaristas, abolicionistas e outras, que agem de acordo com a sua autonomia e visão sobre o assunto. A CML ao assumir institucionalmente o conceito de ‘trabalho sexual’ estará a assumir que os seres humanos estão à venda, à disposição das vontades sexuais de outrem (anulando qualquer possibilidade de autodeterminação sexual) e legalizando o lenocício contra a lei e as múltiplas convenções ratificadas pelo Estado português. Sobretudo com uma posição de menorização e total desrespeito pelos direitos humanos de mulheres e meninas (não podemos alhear-nos do facto de que são as mulheres a maioria das pessoas prostituídas e que a idade média de entrada na prostituição é de 14 anos) que poderão ser vendidas para satisfação de necessidades sexuais dos homens, perpetuando uma visão misógina e machista da sociedade e que tudo está à venda, incluindo o corpo e os afectos”.

Por sua vez, Ivan Gonçalves, deputado do PS e secretário-geral da JS (e autor de uma proposta de regulamentação da prostituição que se baseia na legalização do lenocínio), diz encarar o debate “como sendo uma união conjuntural entre forças conservadoras que, por terem uma visão preconceituosa e moralmente reprovadora do trabalho sexual, acabam por perpetuar no tempo a estigmatização social das pessoas que o exercem. A verdade é que a atividade da prostituição, que é a mais comummente falada, se insere numa indústria do sexo muito mais lata, desde a prostituição aos atores de filmes pornográficos, passando pelas redes de sex shops, trabalhadores de linhas eróticas, etc. Tudo atividades que ou já são consideradas como trabalho à luz da lei ou que, em nossa, opinião o deveriam ser”.

Segundo Gonçalves, “o PS tem uma responsabilidade histórica, enquanto força progressista e de esquerda, de estar ao lado das franjas mais vulneráveis da nossa sociedade. O facto de, em plena AML, ter votado ao lado destas forças conservadoras uma moção que explicita que um adulto que opte, no exercício da sua liberdade, por vender um serviço sexual não deve ser reconhecido como um ‘trabalhador do sexo’, é uma posição retrógrada, que não está à altura da história do nosso partido e na qual não me revejo minimamente. Sabendo nós todos os constrangimentos que já existem na vida destas pessoas, vejo-a apenas como mais uma forma dos poderes públicos varrerem para debaixo do tapete um problema que existe, votando estas pessoas ao ostracismo. Não é pelo facto de venderem um serviço sexual que estes trabalhadores devem ser considerados cidadãos de segunda e que os direitos mais básicos lhes podem ser negados”.

 

“A prostituição voluntária ou o trabalho sexual consentido”

Considera que a iniciativa de criação da Plataforma Local na Área do Trabalho Sexual e, sobretudo, a utilização da expressão “trabalho sexual” estão imbuídas de uma intenção de descriminalizar o lenocínio (uma vez que a prostituição, por si só, não é crime em Portugal) e normalizar a prostituição como um negócio, um mercado, uma opção livremente tomada por seres humanos? “Acima de tudo, a realidade diz-nos que estas pessoas vivem a situação ‘esquizofrénica’ de estar entre uma legalidade encoberta e uma clandestinidade consentida”, responde Gonçalves. “Por isso, desde logo, reconhecer formalmente que estes fenómenos existem, procurar acompanhá-los e dar-lhes respostas que resolvam os problemas das pessoas só pode ser algo muito positivo. Depois, não só não acho que se esteja a descriminalizar o lenocínio ou a normalizar a prostituição, como acho que é o facto de os trabalhadores do sexo serem atualmente remetidos para a marginalidade que os torna mais vulneráveis e lhes retira poder de denúncia e de ação quando acontecem situações que os põem em perigo. E, desde logo, é importante que não se tente misturar duas realidades distintas: uma coisa é a prostituição voluntária, ou o trabalho sexual consentido, outra coisa bem diferente é a realidade do tráfico de seres humanos, a prostituição de menores ou outras formas de exploração sexual. Estas últimas são violência e exploração, um flagelo bem presente na nossa sociedade e devem ser, como já é previsto, tratadas à luz do Código Penal”.

Perante a mesma questão, Gomes responde da seguinte forma: “Sem qualquer sombra de dúvida. A única proposta que está no Parlamento é mesmo essa: a despenalização do lenocínio, porque quem advoga tais teorias entende que o proxeneta é empresário ou que a prostituição é uma profissão como outra qualquer, uma opção livre e consciente. Não negando que exista quem efetivamente queira ter relações sexuais em troca de dinheiro, não é a mesma coisa ser explorado a limpar casas de banho ou a ter relações sexuais com 20 ou 30 pessoas diferentes num dia, por 5 ou 10 euros, por mais que digam que é. Os exemplos internacionais, como é o da Nova Zelândia, dão-nos nota que as pessoas não são livres de dizer não aos clientes, que aumenta substancialmente o nível e tipo de violência exercida pelo facto de estarem dentro de um quarto, que a formação profissional que têm ser de como reagir em caso de violação. E, sendo despenalizado o lenocínio, nenhuma pessoa conseguirá provar que foi obrigada ou sequer violada: serão riscos inerentes à tal ‘profissão como qualquer outra’. Não é despiciendo que os tratados internacionais não relevem o consentimento nestes casos nem tão pouco os inúmeros estudos que comprovam que a ligação entre a regulamentação e o tráfico é directamente proporcional: onde está regulamentada como atividade, aumenta o tráfico de mulheres, homens e crianças. Basta ver que, na Holanda, cerca de 90% das pessoas prostituídas não são holandesas. Na Áustria, mais de 70% são oriundas da Bulgária e da Roménia. Na Nova Zelândia, a prostituição chamada de ‘irregular’ teve um aumento de 300% após a regulamentação”.

“O que é curioso é que estes movimentos e partidos dizem ser contra a objetificação da mulher e a violência contra a mulher (relembro aqui a queixa contra o anúncio da bilha do gás), mas entendem que é liberdade ter uma mulher numa montra, tal e qual como um talho”, acrescenta.

 

“A criação de mecanismos de emancipação”

Considera que a decisão de uma mulher se prostituir é livremente tomada, no sentido de o fazer por vontade própria, mesmo tendo outras alternativas de subsistência? A esmagadora maioria das mulheres que se prostituem não o fazem em último recurso, por sobrevivência, ou mesmo impelidas, obrigadas, traficadas, exploradas por proxenetas? A sociedade não deveria ajudar essas pessoas a não terem que se prostituir, protegendo-as dos traficantes e proxenetas, oferecendo-lhes protecção, concedendo-lhes alternativas de subsistência? “Não utilizaria a expressão ajudar. É da responsabilidade do Estado a criação de mecanismos de emancipação: desde campanhas de educação sexual promovendo o respeito e a igualdade, a planeamento familiar gratuito, campanhas de sensibilização para as questões da violência e de tráfico, linhas telefónicas gratuitas, isenção de taxas judiciais para processos de violência de género, isenção de taxas moderadoras (mesmo sem aplicação do Estatuto de Vítima), o real funcionamento da Comissão de Protecção de Vítimas de Crimes Violentos e a atribuição do subsídio transitório por seis meses, programas de requalificação na área do emprego, protocolos de empregabilidade com entidades públicas e privadas (como existem entre o Ninho e a Câmara Municipal de Lisboa), entre outras. Isto é, a criação de alternativas reais para quem queira sair da prostituição, com acompanhamento médico e medicamentoso, psicossocial para si e para as suas famílias. A maioria das pessoas prostituídas não escolhem, simplesmente não tiveram opção. E isto não é vitimizar ninguém, é ser realista. Não é querer proteger ninguém de si próprio mas criar alternativas para que aí sim, se possa decidir com alguma margem de liberdade”, responde Gomes.

“Os sucessivos governos têm simplesmente assobiado para o ar quando se fala nesta questão, apesar da multiplicidade de instrumentos de diagnóstico já produzidos e de medidas concretas propostas mas nunca aprovadas, das muitas recomendações da Comissão Europeia, da ONU (CEDAW), de posições conjuntas de centenas de organizações feministas por toda a Europa. Porquê? Por exemplo, por ser uma fonte de rendimento substancial para alguns órgãos de comunicação social, gerando milhares de euros em anúncios sexuais que configuram a prática de lenocínio. Porque geram rendimento informal mas que pode ser sempre declarado. Porque não interessa olhar para esta questão com o humanismo que ela exige. Sejamos claros: qualquer pessoa se pode prostituir. É legal. E pode passar um recibo verde, declarando o rendimento e beneficiando do desconto para a segurança social. Do que se trata não é de proteger as pessoas prostituídas mas sim de proteger proxenetas e clientes e perpetuar um sistema misógino e machista de exploração de mulheres e meninas”, argumenta.

Em resposta à mesma pergunta, Gonçalves diz que “é apenas destes casos que falamos: daqueles em que um adulto opta, livremente, por ser trabalhador do sexo. Nestes casos, esta opção deve ser encarada eminentemente como uma questão de liberdade de escolha individual e do direito de as pessoas poderem dispor do seu próprio corpo como bem entenderem. Sim, é verdade que uma escolha individual é sempre condicionada por inúmeros fatores, como o meio social de proveniência, possíveis dificuldades económicas, etc. Contudo, os argumentos de que ninguém escolhe livremente o trabalho sexual negam a capacidade para tomar esta decisão de forma consciente a todos os trabalhadores do sexo, que constituem um grupo muito heterógeno de pessoas. Os constrangimentos económicos são, muitas vezes, causadores de escolhas profissionais menos realizadoras mas não por isso formas de escravatura. O que não implica, antes pelo contrário, que a sociedade não deva ter uma obrigação de atenuar estes constrangimentos, no sentido de dotar todos de oportunidades de realização pessoal e profissional, nem que não se deva combater todas as instâncias de exploração, assédio e outras formas de violência laboral”.

“O trabalho sexual enquanto opção tomada pelo livre-arbítrio, sem coação – seja porque uma pessoa, num determinado momento da sua vida, entende que essa é a forma mais rápida que tem à sua disposição de ganhar dinheiro, ou por outro motivo qualquer -, não deve ser proibido apenas porque ainda existem na sociedade padrões morais conservadores e uma visão sacralizada das sexualidades. Não sendo proibido, deve ser regulamentado, para que situações de abuso não se verifiquem”, defende o líder da JS.

 

“A possibilidade de terceiros prestarem legalmente atividades conexas”

Qual é o objetivo da proposta da JS que aponta no sentido da legalização ou descriminalização do lenocínio? “O objetivo da JS é o de regulamentar o trabalho sexual. Seja com a manutenção da atual figura do lenocínio, seja com alterações à sua tipificação”, assume Gonçalves. “A luta pela regulamentação da prostituição tem como base o entendimento de que o trabalho sexual é uma forma de trabalho. Esse argumento justifica não só a não-criminalização da atividade pelos próprios trabalhadores sexuais, bem como a possibilidade de terceiros prestarem legalmente atividades conexas”.

Quanto a Gomes, manifesta o seu “desacordo total” relativamente à iniciativa da JS. “A proposta aponta apenas no sentido da descriminalização do lenocínio, não aponta nenhum modelo, nenhum regime, nenhuma forma de melhoria das condições das pessoas prostituídas. Limita-se a debitar uma série de preconceitos e lugares comuns como a saúde da mulher (e o cliente não é examinado porquê?), a tributação de rendimento (todo o rendimento pode ser tributado mesmo que não indicada a fonte), os descontos para a Segurança Social e a não existência de proxenetas (se assim é, estamos a falar de trabalho independente, logo, podem inscrever-se na Autoridade Tributária como prestadoras de outros serviços e passar o competente recibo). A JS nem sequer se deu ao trabalho de estudar os modelos e o falhanço desses modelos – quer a Holanda, quer a Alemanha, quer a Nova Zelândia estão em processo de revisão da regulamentação da prostituição e o resultado prático de tal proposta é a promoção do chulo a empresário e parceiro do Estado. Nada mais”, afirma.

Na medida em que a prostituição em Portugal não é ilegal, na medida em que as prostitutas até podem declarar rendimentos do seu trabalho na Autoridade Tributária, qual é a necessidade de alterar a lei? Para que seja montada uma indústria de proxenetismo? “Podemos começar por inverter a pergunta. Se as prostitutas já podem declarar rendimentos de trabalho então porque não reconhecer que essa atividade existe e é, de facto, trabalho? Além disso, a criminalização do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição resulta não só na dificuldade prática dos trabalhadores do sexo em exercerem a sua atividade, sendo obrigados a recorrer à marginalidade, como também resulta numa estigmatização da atividade que dificulta a participação desses trabalhadores na sociedade, como por exemplo limitando o seu acesso ao crédito. Tal explica que muitos não tenham casa própria, carro ou poupança para o futuro”, responde Gonçalves.

“Mas a questão essencial reside numa palavra: dignidade. A regulamentação acompanhada, por exemplo, dos mesmos direitos laborais que têm os restantes ofícios dignificará estas pessoas aos olhos da sociedade. Alargará os direitos laborais, sociais e de cidadania plena a estes indivíduos, reconhecendo-os como parte integrante de uma sociedade e dando-lhes direitos básicos como o de terem higiene e segurança no trabalho, direito a baixa médica, férias, formação profissional, entre outros”, enaltece o deputado do PS.

Gomes discorda. “É precisamente para que seja montada uma indústria de proxenetismo, tal como na Áustria, na Holanda, na Nova Zelândia, etc. Há aplicações móveis para pontuar as mulheres, comentando se são frígidas, velhas, novas, comentando a sua etnia, a sua beleza como um qualquer bem transacionável. Há chats de clientes em que os comentários são absolutamente inenarráveis, os estudos sobre clientes demonstram que a sua intenção é exercer o controlo total. Além do que, descriminalizando o proxenetismo, escancara-se a porta ao tráfico, doméstico e internacional”, alerta. “Para onde vão levar os traficantes as pessoas para fins de exploração sexual? Para um país onde possam livremente exercer a sua atividade, sem qualquer ameaça de condenação. Alguém acredita que um cliente vai perguntar à pessoa prostituída se ela foi traficada? E que a vai salvar? Na prostituição não há contos de fadas nem «zonas seguras». Há violência, escravatura, machismo, domínio, negócio, exploração e desrespeito por direitos tão básicos como a autodeterminação sexual. Se eu for paga, já não é violação? É essa a diferença? Se eu for paga, já não é tráfico?”

“Como dizia o Ninho francês: o que choca não é o sexo, é o dinheiro. E é seguindo o dinheiro que se percebe o verdadeiro motivo para a regulamentação da prostituição. A preocupação não é nem nunca foram as pessoas”, conclui.

 

“Legalidades encobertas e clandestinidades consentidas”

O denominado “Modelo Nórdico”, instituído em países da Escandinávia, não criminaliza a oferta de prostituição mas apenas a procura. O que pensa sobre esse modelo? Acha que seria positivo aplicá-lo em Portugal? “Um modelo de regulamentação que criminalize será sempre um mau modelo. E os resultados no terreno têm comprovado isso mesmo. Para além de falhar no objetivo de diminuir o trabalho sexual”, considera Gonçalves. “Muitas vezes, especialmente em modelos que criminalizam toda a atividade, ou parte dela, a realidade piora porque ou a construção do modelo não envolveu todos os intervenientes e os vários setores da sociedade, ou o modelo acrescentou estigma, forçou pessoas à marginalização e ao velho paradigma ‘esquizofrénico’ de estas pessoas estarem entre legalidades encobertas e clandestinidades consentidas”.

Para Gonçalves, “o ‘Modelo Nórdico’ remete os trabalhadores do sexo para situações de maior precariedade e clandestinidade, já que a garantia de proteção dos clientes – que, em última análise, são a fonte de rendimento do trabalhador do sexo – passa a ser um fator fundamental na equação conduzindo, inevitavelmente, a situações de maior vulnerabilidade no exercício da sua profissão. Em última análise, este é um modelo que retira a prostituição da vista de todos, ou seja, que se preocupa mais com a moral e com os bons costumes do que com a defesa dos direitos dos trabalhadores do sexo e, como é óbvio, não podemos partilhar esta visão”.

Por seu lado, Gomes defende que “nenhuma pessoa prostituída deve ser criminalizada ou penalizada. Este é um ponto de honra que muitas vezes os defensores das teorias do ‘trabalho sexual’ tentam deturpar como se em algum momento as correntes abolicionistas o tivessem defendido, o que é uma falsidade tremenda. Sigo com muita atenção o modelo nórdico e tendo participado em vários colóquios internacionais onde estiveram presentes membros do governo sueco, por exemplo, posso afirmar que existem medidas muito interessantes neste modelo nomeadamente as «schools for johns». Isto é, quando são detectados clientes, muitas vezes ao invés de os acusarem e imediatamente sujeitarem a julgamento, estes frequentam acções de formação sobre políticas de igualdade e a necessidade de emancipação das mulheres. Algo que me parece profundamente interessante e necessário (em várias áreas). Não obstante, entendo que um sistema como o francês, que determina que seja um delito contraordenacional e cuja lei fará já o seu segundo ano de vigência, resultará melhor. Aliás, o eco social é de que foi uma medida muito bem implementada e acompanhada com políticas transversais – e isto não pode ser esquecido – de formação, apoio, empregabilidade, saúde, educação, entre outras”.

“Assim, e apesar de reconhecer muito mérito ao chamado ‘Modelo Nórdico’, penso que a criminalização é um passo que, no nosso sistema penal, cuja tónica é a ressocialização, não deve ser tomado”, ressalva. “Um sistema contra-ordenacional acompanhado de medidas preventivas e pedagógicas seria, a meu ver, mais eficaz. E sempre em simultâneo com medidas mais abrangentes que já citei, a par da revisão do crime de tráfico (instituindo o crime de tráfico doméstico), bem como do alargamento do período de reflexão das vítimas e da criação de estruturas estatais de acolhimento das vítimas de tráfico para que estas não sejam expatriadas e revitimizadas. Há muito ainda a fazer. Falta a vontade política e soçobra a demagogia”.

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