A sequência começa a tornar-se recorrente: semanas antes da reunião mensal do Banco Central Europeu (BCE), analistas de mercado, observadores e economistas antecipam o princípio do fim do programa de estímulos da autoridade monetária da zona euro e anunciam a normalização das taxas de juro; referem os números da retoma, apontam para a descida do desemprego, invocam a inflação, falam sobre a expansão do balanço do BCE e recordam os receios do Bundesbank. Mas os meses passam e não há forma de Draghi se deixar convencer. Reunião, após reunião, o presidente do BCE encolhe os ombros e repete o discurso: é preciso continuar a carregar no pedal, ser persistente… e aguardar.
Na reunião da semana passada, o tom não foi muito diferente. Ao contrário do que se esperava, o italiano não deu pistas em relação ao futuro do Quantitative Easing – limitou-se a dizer que pode haver notícias em outubro, mas que a decisão final só será tomada até ao final do outono. Porquê a prudência? É impossível saber o que estará na cabeça de Mario Draghi, mas a leitura dos números mais recentes, e algum conhecimento da experiência americana, podem lançar alguma luz sobre as dores de cabeça do presidente do BCE. E explicar por que é que, neste momento, todo o cuidado é pouco.
1. Inflação longe da meta.
Sempre que o Eurostat publica a sua nota mensal da inflação, a atenção da maioria das pessoas é invariavelmente puxada para o Índice Harmonizado de Preços do Consumidor (HICP, na sigla inglesa), a ‘meta oficial’ do BCE. Segundo o Eurostat, o HIPC rondou os 2% no primeiro trimestre e em agosto caiu para 1,5%. Tecnicamente, pode dizer-se que a inflação já está na banda desejada: perto, “mas abaixo”, dos 2%, tal como inscrito nos estatutos do BCE.
Acontece que uma boa parte desta convergência é ditada por fatores temporários, que sabemos antecipadamente que irão desaparecer no futuro próximo. Para expurgar do HIPC estas componentes ‘voláteis’, que fazem a inflação oscilar de forma espúria, o Eurostat calcula outro indicador: a ‘inflação subjacente’. Apesar de esta não ser a meta do BCE, ela fornece informação muito mais precisa acerca das tendências de fundo dos preços na zona euro, e, por isso, é um indicador mais apropriado para calibrar a política monetária. Ora, a inflação subjacente tem estado sempre abaixo dos 1,4% e só muito recentemente ultrapassou 1% (ver quadro ao lado). O progresso, apesar de real, é tímido. Conclusão: ainda há muito caminho por percorrer.
2. Até onde vai descer o desemprego?
O mandato do BCE deixa bem claro que o seu único objectivo é velar pela inflação, mas convém notar que a inflação é em grande medida ditada pela força do mercado laboral, que afeta as decisões de contratação das empresas, as negociações salariais e, portanto, a fixação de preços. A expetativa do BCE é que a taxa de desemprego continue a descer como até aqui e que essa descida alimente a subida da inflação subjacente. Isso não é certo, sobretudo agora que o desemprego começa a aproximar-se do nível que vigorava antes da crise (8%-9%). Se a situação laboral estagnar daqui para a frente, a economia europeia pode facilmente ficar presa numa armadilha de baixa inflação.
3. Incerteza constante.
Mesmo a própria descida do desemprego pode não ser suficiente para revitalizar a inflação e deixar o BCE sossegado. A investigação recente – boa parte da qual conduzida pelo próprio banco central – mostra que nos últimos anos os preços passaram a reagir cada vez menos à robustez do emprego. Esta quebra na relação entre o que se passa no mercado laboral e as pressões sobre a inflação permitiu impedir a deflação durante os períodos mais agudos da crise, mas também torna agora mais difícil operar o movimento de sentido contrário. De facto, de acordo com os modelos do BCE, a inflação já devia estar bastante mais alta do que o apurado pelo Eurostat. Este é, portanto, um duplo risco: mesmo que a retoma ganhe força, não é garantido que isso, por si mesmo, chegue para cumprir o objectivo da estabilidade de preços. Esta é uma camada adicional de ‘ses’ que o BCE tem de ultrapassar.
4. O estranho caso americano.
Se as ideias dos pontos anteriores parecem demasiado abstratas podemos ilustrá-las olhando para os Estados Unidos. Entre 2009 e 2017, a taxa de desemprego caiu de cerca de 10% para 4,4%. Anos antes, ninguém diria que um desemprego tão baixos seria possível – esta taxa é muito inferior a qualquer estimativa daquilo que é o desemprego ‘estrutural’ que a economia consegue sustentar sem gerar pressões inflacionistas. Mas os EUA já levam quase um ano com um desemprego abaixo dos 5%, e inflação… nem vê-la. Ou quase. Os preços chegaram a avançar 2% durante dois meses, mas logo depois voltaram a cair abaixo da meta. Se nem um desemprego de 4,4% chega para pôr a inflação nos trilhos, até onde será preciso ir?
Artigo publicado na edição digital do Jornal Económico. Assine aqui para ter acesso aos nossos conteúdos em primeira mão.
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