Um homem senta-se na parte de trás de um carro, um Saab 900 vintage vermelho, enquanto uma mulher ao volante guia pelas estradas de Hiroxima, Japão. Enquanto ela conduz, o homem ouve as cassetes que reproduzem a voz da sua falecida mulher a recitar diálogos da peça de Anton Tchekov, “Tio Vanya”. Por vezes, as falas parecem ecoar emoções do protagonista viúvo, num estranho jogo metaliterário.

Esta é só uma brevíssima descrição da imensa riqueza que emana da última longa-metragem de Ryûsuke Hamaguchi, “Drive my Car”, inspirada numa história de Haruki Murakami e que acabou de ganhar o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.

O ritmo lento – o filme tem a duração de três horas – permite-nos desfrutar, com vagar, da forma como as relações em jogo evoluem. O passado conjuga-se com o presente, e é difícil encontrar um rumo para o futuro que torne a vida mais suportável. Através da arte, o protagonista, um encenador de teatro, consegue lidar com o seu vazio emocional e começa a desvendar a vida daquela mulher misteriosa e serena que o leva para todo o lado ao volante do seu carro vintage. Descobre que também ela tem um passado do qual não conseguiu ainda escapar.

O vazio de ambos é lentamente preenchido pelas paisagens de Hiroxima e pela empatia e conforto que encontram nas suas conversas. Numa das cenas mais belas e notáveis do filme, o protagonista desempenha o papel de tio Vanya em palco e contracena com uma atriz que profere os seus diálogos em língua gestual coreana. É a cena em que Vanya é salvo do suicídio, resgatado pela mulher que lhe oferece um sentido para a vida.

É difícil não ver “Drive my Car” como um filme que faz a síntese perfeita dos tempos em que vivemos. Tal como o protagonista, deambulamos presos ao passado, em busca de perdão e segundas oportunidades, que nos ajudem a encontrar o sentido e motivação para o tempo presente.

Atualmente, estamos demasiado focados na nossa capacidade (ou incapacidade) de nos adaptarmos ao que nos parecia impensável há cerca de três ou quatro anos. E falamos pouco sobre o impacto na nossa saúde mental de todas as mudanças vertiginosas, que nos obrigam a recorrer a estratégias de escape de uma realidade que se afigura cada vez mais incerta e aterradora.

Como lidamos com a perda, a insegurança ou a crescente ansiedade define muito da nossa condição presente. Talvez seja altura de esta década do século XXI aceitar que o amor não tem, forçosamente, de ser irrelevante na equação ou tomado como garantido, sendo, sim, uma imensa fonte de inspiração. No cinismo e inquietude destes tempos atribulados que vivemos, esquecemo-nos da importância de encontrar alegria e amor. E de como é bom poder dizer essa palavra – amor – sem medo, sem a associar a um sentimentalismo excessivo.

Em “Drive my Car” é a perda do amor que conduz à alienação, mas também se encontra o amor nos lugares onde menos se espera. Há esperança e redenção que vêm com o amor, mesmo que a mágoa e tristeza nunca desapareçam.

Esta pode parecer uma crónica estranha de escrever nos dias que correm, repletos de turbulência socioeconómica e política, mas a literatura, o cinema, o teatro, a Arte em geral, ensinam-nos que não nos podemos limitar a sobreviver. Enquanto humanos, a nossa natureza impeliu-nos sempre para muito mais longe.