Que comprimento tem a sua pegada social doméstica?

O confinamento profilático prolongado pode acentuar a ocorrência de conflitos. São alguns fatores de contexto facilitadores da sua eclosão: longos períodos em circunscrição a espaços fechados que em casas pequenas e sem área externa se agrava; densidade humana colocada com simultaneidade de uso dos recursos; correlata extensa exposição aos outros associada a dificuldade de espaço e tempo de cada um para si; balancear difícil de momentos e ritmos entre mundos de vida e de trabalho; repartição de tarefas de apoio aos mais dependentes; enfim, solicitação recorrente a esforços de ajustamento mútuo com a gestão de tensões a que o desiderato de convivialidade tolerante recomenda.

Este cenário é agravado por certos padrões de comportamento: louças a aguardar senha de banho, camas em novelo de lençóis, sofás afogados em desalinho de mantas, roupas em trilhos de sapato e em casulo amarfanhadas, papéis e brinquedos em diáspora das gavetas, garrafas e copos de companhia ao tapete da sala, lago no quarto de banho, autoclismo em espera, lavatório e banheira em cabelos engasgados, difusão televisiva ou musical invasiva… E, quando assim se passa, amiúde há um carola – não raro no feminino – que se agasta porque invariavelmente colado ao papel de fada: enche, satura e lá vem a hora da desanca, e, mesmo que adiada, a sua contenção (com tensão) devora paciência.

Sucede ter recentemente passado pela experiência de acolher familiar: homem cinquentão, de sempre experimentado na dependência de almas gentis, a lidar com agravos domésticos efervescentes por tão displicente pauta de conduta, desanimado por em si não descortinar talentos a que recorrer para melhor atuação. Em desespero de vítima, eu, inspirado pela metáfora associada aos desafios da sustentabilidade ambiental, ocorreu-me, com insuspeito sucesso, federar o que ele via no campo da omissão das virtudes pessoais, e de que se achava por natureza desprendado, no conceito de ‘pegada social doméstica’. Esta desconfortável marca convoca à profilática filosofia prática de estar em fluída leveza relacional, garantindo harmonia de interesses e que tudo esteja impecável para quem vem depois.

Em retrospetiva estimo que explicam o sucesso da transformação, subsequentemente sustentada e louvada pela surpreendida consorte, a confluência circunstancial, num intelecto marcadamente racional no qual o conceito de ‘pegada social’ fez muito sentido, de: crispação recursiva no lar – a que breve retornaria; vontade de autossuperação para à filha se dar como exemplo; e a consideração pelo anfitrião.

O relatado dá evidência casuística de que, em circunstâncias que o exijam, mesmo burro velho pode aprender línguas. Cuidar da contenção da pegada social doméstica deve ser uma responsabilidade cívica partilhada. O confinamento profilático é a pressão do tempo que compele à reinvenção nos hábitos que sustentem harmonia relacional nos núcleos estruturantes das nossas vidas – estar bem em família é um ativo inestimável em aperfeiçoamento contínuo.

Mais me surpreendi ao interpelar-me com este conceito, acedendo à compreensão de que são também componentes desta pegada: silêncios que desconsideram, ensimesmar no telemóvel indiferente aos companheiros ou a autoexclusão de tarefas de interesse comum. Interroguei-me, então, sobre o que na minha conduta poderia ser trave à frente do olho e o desenlace insuspeito foi: a ironia brincalhona sistemática cansa, também gera pegada. Por isso, em introspeção aberta lhe pergunto: que tamanho calça?