O mundo entrou em 2020 sob os auspícios do acordo comercial entre a China e os Estados Unidos, depois de mais de um ano de avanços e recuos – por vezes freneticamente publicitados em primeira mão pelas redes sociais – que causou bastante incerteza em diversas dimensões de análise a nível mundial.

Só que o charme da fase um do acordo esconde provavelmente um compasso de espera, uma espécie de termos para eventualmente se chegar a um acordo. Ou, alternativamente, apenas para comprar o tempo necessário para que o mundo económico respire, enquanto a China consegue conter a espiral de imposição de tarifas, e os Estados Unidos, do seu lado, obtêm maiores quotas de importações por parte do gigante asiático, sobretudo no segmento agrícola, ou mais garantias relativamente aos direitos sobre a propriedade intelectual. Mas, sobretudo, para que os Estados Unidos possam estabilizar as águas num ano que será marcado por eleições presidenciais.

No exercício de equilíbrio que representa este acordo existe uma certeza – as raízes fundamentais por detrás deste impasse entre a China e os Estados Unidos são profundas, e estão longe de estar resolvidas.

A liderança tecnológica é o real campo de conflito

As questões fundamentais que estão nas costas dos problemas entre os dois gigantes económicos globais encontram-se entrincheiradas no capítulo da propriedade intelectual, e as rondas negociais com o objetivo de chegar a uma segunda fase do acordo comercial poderão ser muito complicadas. Alguns observadores antecipam inclusive que não haverá agenda antes das eleições norte-americanas, e que terão lugar apenas no início de novembro.

Nesta fase foram alcançados alguns progressos, em particular depois da China ter feito algumas concessões – sobretudo no que diz respeito a uma maior imposição de controlos sobre os direitos de propriedade intelectual, e principalmente no que diz respeito às imposições relacionadas com o acesso ao mercado doméstico – que tornaram as exigências regulatórias relativamente a transferências de tecnologia mais brandas, assim como uma maior abertura também no que diz respeito ao setor financeiro chinês.

Por outro lado, os Estados Unidos comprometeram-se com um pacto de não-agressão, que passa essencialmente por não introduzir novas tarifas comerciais, e reduziram para metade o aumento das últimas medidas implementadas em setembro último, que passam de 15% para 7,5%, em importações norte americanas que representam mais de 100 milhares de milhões anuais. Todas as restantes imposições implementadas anteriormente mantêm-se, o que deixa a tributação média dos Estados Unidos sobre produtos chineses em cerca de 19% em 2020 de acordo com algumas análises, um crescimento exponencial face aos 3% que eram cobrados antes da disputa comercial ter começado.

A “fase dois” é um mito?

Existe por isso um largo campo que separa as partes relativamente a este tema. Neste sentido, é natural que alguns olhem para este acordo como o entendimento possível entre Estados Unidos e China – e está ainda por ver se as atuais tréguas são passíveis de implementar no contexto atual. E isso poderá levar, no limite, caso se verifique uma falha na capacidade de implementação do acordo, a outras medidas protecionistas que podem originar uma espécie de derivação da frente de comércio externo – por exemplo, no campo das restrições de acesso a tecnologia de componentes norte-americanos via exportações, limitando a capacidade de produção das empresas chinesas de tecnologia (e não só), afetando a capacidade de desenvolvimento destas no mercado internacional.

Este exemplo e receios associados não são de facto negligenciáveis, e podem reacender as tensões entre os dois grandes blocos, sendo que o efeito contágio potencial para a economia global teria impactes com aspetos incontornáveis. Atualmente, aliás, a imposição de tarifas sobre os produtos chineses não é isenta de consequências económicas para os importadores norte-americanos, que começam a ver as suas margens de retorno a diminuir pela imposição de tarifas comerciais, o que criará pressão sobre os resultados das empresas que utilizem produtos fabricados no gigante asiático no seu processo produtivo.

À medida que a janela dos benefícios fiscais implementados em 2018 (que serviu de almofada na primeira fase das imposições à China) vai-se fechando, os impactes negativos deverão começar a ser visíveis em alguns setores mais sensíveis, minando a confiança e o investimento por parte dos agentes económicos. Uma súbita e inesperada inversão destas tréguas agora negociadas poderia ter impactos imprevisíveis, e trazer de volta o espectro de uma recessão.

Um acordo para chegar a acordo

Sem dúvida que o estilo negocial do atual presidente norte-americano deixa sempre espaço para alimentar especulações e incerteza quanto ao destino final do processo de negociações, ficando a impressão de que poderá apostar no impasse. Contudo, a fase dois pode acabar por ter outro interlocutor que não Donald Trump. Aliás, mesmo a atual administração poderá acabar por trilhar um caminho mais construtivo e menos conflituoso ou publicitado.

Ambas as partes podem, nesta primeira fase, ter alcançado uma espécie de regras de compromisso ou um acordo para chegar a um acordo. Isto é, ter decidido lidar já com as questões mais simples de gerir, comprando confiança e sobretudo tempo para depois negociar temas mais sensíveis e que exigem uma implementação de carácter mais estrutural.

Por outro lado, não é líquido que a posição da China seja inflexível relativamente ao tema que é o verdadeiro gigante na sala, que é a propriedade intelectual. Neste momento, a potência emergente é ela própria uma dominante inovadora à escala global, e necessita de promover adicionalmente mais regulação que proteja a propriedade intelectual e mantenha as transferências de tecnologia sobre controlo.

Adicionalmente, uma maior abertura relativamente ao investimento estrangeiro e eliminação das barreiras de acesso ao mercado chinês são campos onde o governo de Xi Jinping mostrou bastante progresso durante o ano passado, facto que vai ao encontro de muitos dos aspetos que estiveram na origem do conflito diplomático com as potências económicas ocidentais, nomeadamente os Estados Unidos.

‘Bottoms up’: reformar o que existe com bom senso

Não é por isso inevitável que a fase um seja apenas um período de tréguas, e que após alguns meses possamos assistir ao reacender das disputas comerciais ou tecnológicas entre Estados Unidos e China. A arte de negociar prende-se muitas vezes com o bom senso, que, imperando, permite um resultado favorável para todas as partes. Os recentes desenvolvimentos no posicionamento da China – mais liberal, com acesso ao mercado, e mais consciente sobre propriedade intelectual –, conferem uma tonalidade construtiva de sensatez neste processo. Por outro lado, os Estados Unidos têm dado sinais de promoção do diálogo em termos diplomáticos – inclusive com algumas notícias a darem conta que serão retomados encontros bianuais sobre reformas estruturais e resolução de disputas comerciais.

O caminho para um acordo final deverá ser uma longa e árdua caminhada, que até poderá prolongar-se por vários anos, mas onde as regras de compromisso podem ser agora construídas com base nesta fase um. Se ficar percetível que foi essa a real conquista da última cimeira, então até poderemos estar perante uma reforma da globalização, que poderá ser de extrema relevância para as próximas décadas.