A criminalidade é um fenómeno real nos efeitos que produz e nas preocupações que suscita.  Porém, não existe no mundo exterior como as coisas que podem ser medidas e contadas independentemente de quem o faz e considera como tais. Não existe em todas as épocas, circunstâncias e lugares tal como falamos dela hoje, e a existência que ganha depende das várias maneiras possíveis de lhe reagir, de a detetar, relatar, registar, contar e processar.

O retrato que obtemos depende muito, na verdade, dos instrumentos que usamos para a apurar. Aquele que nos é dado a conhecer pelos chamados inquéritos de delinquência autorrevelada, que tendem a mostrar a quase ubiquidade de práticas que violam normas e a sua transversalidade a todos os meios sociais, é bem diferente do retrato que emerge das estatísticas oficiais, e diferente ainda do retrato traçado pelos inquéritos de vitimação. Não há um retrato do crime, mas vários.

Qual é verdadeiro? Todos e nenhum.  Nenhum, porque nenhum retrata, nem pode retratar, a realidade. Todos, porque cada um nos dá acesso a uma realidade, mas esconde outras. Daí que se procure combiná-los no estudo das tendências da criminalidade. Procura-se também captar estas tendências no tempo longo, pois as flutuações de ano para ano nos números da criminalidade podem ser irrelevantes e o sobe-e-desce anual ter pouco ou nenhum significado.

Há hoje um razoável consenso quanto a algumas linhas de evolução dos padrões de criminalidade e de violência na longa duração. À cabeça, a que indica níveis de crime e violência bem mais elevados em eras anteriores do que os atuais, mesmo atendendo às diferentes bitolas em jogo. Nas sociedades ocidentais a violência interpessoal veio a diminuir desde a alta Idade Média, em especial a partir do século XVIII.

Portugal inscreve-se também nesta evolução, com algum desfasamento. Sublinhou-se a este propósito a estrutura peculiar da criminalidade portuguesa, dada a transição bem mais tardia para um perfil criminal mais centrado no património do que no sangue, depois de há muito esse padrão se ter já instalado noutros países europeus. A meio do século passado, a proporção dos crimes contra as pessoas ainda prevalecia sobre a dos crimes contra a propriedade, e os níveis elevados de crime violento face aos desses países eram alimentados sobretudo pelos homicídios em meio rural.

As sociedades rurais do passado eram de facto bem mais violentas do que o mundo urbano do presente e do passado. Nelas a violência tinha a dimensão relacional dos crimes de interconhecimento.

Nas cidades, o que predomina são as predações, as subtrações furtivas de bens, que raramente envolvem confronto físico. A velha e difundida ideia dos brandos costumes dos portugueses não seria alheia a esta transição tardia. Segundo J. Fatela, tal ideia não se deveria tanto à ausência de violência, desmentida pelos dados, mas à capacidade para inscrevê-la no âmago das relações sociais e assim torná-la socialmente pouco estranha e digna de nota.

Hoje, Portugal regista índices pouco significativos de crime violento, sendo por isso noticiado de tempos a tempos como um dos países mais seguros do mundo. A criminalidade violenta representa com efeito pouco mais de 4% do total da criminalidade chegada ao conhecimento das polícias em 2018, tendo recuado cerca de 42,5 % desde 2008.

Mas as formas predominantes de violência, essas continuam a ocorrer entre próximos, permanecendo pouco visíveis não só porque escondidas do olhar público, mas também porque veladas socialmente no círculo das relações de proximidade: mais de metade dos homicídios voluntários ocorridos no país nesse mesmo ano foram cometidos em contexto familiar, conjugal ou por agressor conhecido. A esta marcada dimensão doméstica e familiar do crime violento acrescenta-se a dimensão de género, pois a maioria das vítimas são mulheres e a dos arguidos homens.

É usual explicar a tendência para o declínio da violência no tempo longo à luz da ideia de “suavização dos costumes”, segundo a qual o Estado moderno, que se atribuiu a legitimidade exclusiva do exercício da violência e substituiu as justiças particulares pela justiça pública, se acompanhou de um crescente controlo do comportamento e da autocontenção dos indivíduos, bem como do desenvolvimento de novos hábitos e sensibilidades públicas mais intolerantes à violência: à violência interpessoal do homicídio e da agressão física, mas também ao espetáculo público das execuções no cadafalso e dos suplícios corporais. Em suma, menor recurso à violência e menor aceitação da violência.

Diga-se que para tomar como inteiramente válida a explicação da “suavização dos costumes”, já de si baseada num leque muito estreito de sociedades, seria necessário reter apenas os períodos de paz, ignorando os “percalços” das duas grandes guerras.

Seria, também, necessário excluir do retrato os genocídios, homicídios e matanças em massa contra minorias étnicas, religiosas e grupos indígenas nessas mesmas sociedades, nas suas colónias ou nos territórios em que travavam guerras e onde muitas das vítimas eram civis. Mas as perspetivas de longo prazo mostram, pelo menos, que algumas subidas pontuais do crime violento têm permanecido sempre muito abaixo dos níveis de violência de períodos históricos mais recuados.

Na maior parte dos países ocidentais, de maneira não uniforme nem linear, o crime contra a propriedade cresce de maneira mais pronunciada a partir da segunda metade do século XX até meados dos anos 90, em especial nas cidades, período que coincide com a elevação dos níveis de riqueza e com o aumento de bens de consumo em circulação, muitos deles tornados mais pequenos e portáteis pelo progresso tecnológico. Há assim mais alvos e menos guardiões disponíveis, em especial com mais mulheres a ingressar no mundo laboral. As oportunidades para o delito predatório multiplicam-se e, com elas, quem seja atraído pelo seu apelo. São assim, até certo ponto, as ocasiões a fazer os ladrões.

Reside aqui uma das razões da relação contraintuitiva entre privação económica e criminalidade contra os bens, que faz com que os índices deste tipo de criminalidade tendam afinal a subir em países caracterizados não pela maior pobreza, mas pela maior riqueza: a escassez de bens materiais e de potenciais alvos nos primeiros limita as oportunidades criminais que abundam nos segundos, sejam quais forem as necessidades individuais decorrentes de situações de privação. Com a exceção dos imperativos da mais nua sobrevivência biológica, ditados pela privação mais absoluta, não é o mesmo ser-se pobre numa sociedade pobre ou pobre numa sociedade rica.

A desigualdade muda o sentido da privação e o modo como é vivida. Numa sociedade rica as aspirações elevam-se e crescem as pressões para as atingir, para mais com a imersão numa cultura de consumo de que dependem cada vez mais identidades e sentidos de pertença coletivos. As oportunidades para concretizar tais expectativas, essas são desiguais. Mas são ambições partilhadas, que atravessam todos os meios, dos mais abastados aos mais pobres, e distribuem-se por todos eles as pessoas motivadas para as atingir, por vias legítimas ou ilegítimas.

Nos mais pobres, porque a frustração desse desejo pode acompanhar-se de um sentimento de privação injusta e de recompensa caótica, nascido da ocasião de constatar que o que não se consegue, ou de que se está privado, está afinal ao alcance de outros não mais dotados, capazes ou esforçados. Nas elites, porque não há forçosamente um patamar de chegada e o sucesso, em vez de saciar as aspirações, pode a cada passo subir a fasquia e alimentar o desejo de novas metas. O crime contra o património não está, pois, associado de maneira linear à privação económica. Daí que a maioria dos pobres não cometam crimes e as elites não se eximam a eles.

Em Portugal, estas dinâmicas chegariam mais tarde, a partir da década de 1970, com a democracia, a melhoria das condições de vida e o acesso mais generalizado a bens de consumo. Do mesmo modo, se na generalidade dos países ocidentais se observa um recuo genérico da criminalidade em meados dos anos 90, será também mais tarde que ele ocorrerá em Portugal, a partir de 2008, com um decréscimo de 21% até 2018.

Entre as explicações mais plausíveis e consensuais para o declínio da criminalidade contra os bens estão as que destacam o recurso crescente a equipamentos antifurto e a dispositivos de segurança cada vez mais sofisticados. As oportunidades de predação “na rua” reduziram-se, não porque o número de alvos tenha diminuído, mas porque aumentou a dificuldade no acesso a eles.

Em contrapartida, nada indica que as predações “nas suítes”, a criminalidade económica e financeira, tenha sofrido idêntico recuo, tanto mais que a chamada “globalização” e a fraca regulação não só criou novas oportunidades para tais condutas, como fez com que estejam cada vez mais demasiado desvinculadas geograficamente das jurisdições locais para poderem ser detetadas e sancionadas.