Provavelmente nunca ouviu falar da Quinta da Safurdas, mas é a quinta da minha avó (hoje já uma estrela) na aldeia de São Gião, concelho de Oliveira do Hospital. Foi nesta quinta que passei quase todas as férias de verão até à adolescência, onde aprendi a mexer na terra, a sujar-me, a plantar batatas, couves ou alfaces. Onde parti a cabeça, onde subi e caí de árvores, onde entrei no meio de florestas sentindo o odor dos pinheiros e da sua resina e onde mergulhei em rios. Foi aqui que entendi o que são tradições rurais e regionais, e onde o valor do trabalho e da entreajuda era (re)conhecido pela população.

Esta era também uma aldeia do interior do país, como muitas, onde uma grande vaga de jovens nos anos 60 e 70 do século XX tinha ido em busca de melhores oportunidades profissionais para si e melhor qualidade de vida para as suas famílias, indo para as grandes cidades do país (como os meus pais) ou para vários países europeus (como o meu tio). E esta geração de emigrantes, que sentia no sangue o valor daquela aldeia, regressava sempre numa espécie de “sinal de agradecimento” pelos valores transmitidos enquanto crianças todos os verões. Eram genericamente reconhecidos como pessoas trabalhadoras “lá fora”, bem como versáteis, ágeis e ávidos de aprender coisas novas para Fazer (F maiúsculo).

Sem me aperceber, estava a ter uma educação plena de experiências reais, com pessoas reais, com realidades e vivências culturais que ainda hoje, enquanto adulto e pai de quatro filhos (dos seis aos 19), aplico no dia a dia. Acima de tudo, aprendi a olhar as pessoas “olhos nos olhos”, aprendi a falar com pessoas, aprendi a dizer “bom dia” e a agradecer a pessoas.

O caminho da vida levou-me para o mundo profissional das tecnologias, onde aprendi muito e a entender alguns dos impactos positivos e negativos do que o mundo digital traz e trouxe à vida pessoal e profissional (os positivos são ainda superiores).

O caminho da vida levou-me, também, há mais de 15 anos a lecionar no ensino universitário, onde interajo com uma população mais jovem, onde atualmente alguns já são nascidos no século XXI, percebendo que na sua infância deixaram de brincar nas ruas, de sentir a terra, de saber olhar nos olhos das pessoas, de plantar vegetais, de construir casas de madeira peça por peça, etc.. A isto acresce um modelo de pensar, sentir e fazer, onde os resultados ou as respostas têm de ser rápidas ou imediatas, caso contrário exasperam ou exigem, porque tudo demora demasiado tempo… Ou seja, não entendem o que é construir “casas”, esperam que “carregando no botão” ela estivesse construída.

Como pai de quatro, analiso e verifico que a grande maioria das escolas é construída com chão “fofinho” nas zonas das brincadeiras e que aos seis anos já há alunos com telemóveis, que em vez de andarem de baloiço, jogarem à bola no recreio, caírem e esfolarem joelhos, estão sossegadinhos (e limpinhos) num banco, a exercitar polegares num ecrã com mais colegas ao lado a olhar. O foco está já no mundo digital, ligando-se digitalmente com quem não se conhece efetivamente, perdendo a noção de espaço à volta com experiências sociais.

Com isto não quero dizer que sou contra o mundo digital, bem pelo contrário! Apenas quero criar e provocar discussões sobre a necessidade de preparar humanos do mundo físico, que têm problemas físicos, com competências de discernir entre o que é digital e o que é físico.

Analisar, compreender e usar modelos de negócio digitais é hoje fundamental, mas com os “pés assentes na terra física” para que não se criem futuras marionetas humanas, evitando o que se via no filme “Matrix” (1999), onde os humanos estavam como vegetais em armazéns, vivendo aprisionados e totalmente influenciados num mundo digital. Não quero ser nenhuma personagem Neo desse filme, que é uma imagem possível do futuro, mas quero continuar a educar os meus filhos a saberem pensar por si sobre como plantar vegetais mexendo com as suas mãos na terra e garantindo que estão preparados para se saberem educar perante mundos plenos, mas inevitáveis, de vegetais digitais.