Nos últimos dois anos, as organizações e as pessoas que as fazem fizeram um esforço de adaptação tremendo. A conciliação trabalho-vida pessoal passou a ser sentida como um desafio generalizado, mas bem presente no dia-a-dia. Deixou de ser só dos outros e passou a ser nosso, ou pelo menos deixou de ser incógnito. De repente, nalgumas organizações, passou a ver-se o que já lá estava: as pessoas, as suas necessidades, o seu bem-estar e o quanto isso, quer queiramos quer não, faz parte do trabalho e influencia o desempenho.

De há muito fazem parte expressões como “trabalho é trabalho, conhaque é conhaque” ou “a minha vida pessoal fica lá fora” ou “todos temos problemas, mas aqui temos que ser fortes e não ligar a isso” ou ainda um ex-líbris da auto-centração: “no meu tempo trabalhava-se muitas mais horas e ninguém se queixava”.

Ao “democratizar” o sofrimento causado pelos isolamentos e infecções da pandemia, deixando claro que para além do corpo há uma mente e que eles não são entidades separáveis (e que assim a saúde é física, mental e social, e que para a sua existência o bem-estar não pode ser um luxo), a pandemia pareceu romper com muitas práticas instaladas. Sim, mas muitas também voltarão a ser as mesmas, na medida em que as crenças dos líderes não tenham sido reestruturadas.

O fenómeno designado por great resignation foi encarado por muitas organizações como um corolário da necessidade de mudança efectiva e não meramente cosmética face a práticas organizacionais promotoras de bem-estar e preventivas do impacto de riscos psicossociais (como o stresse, a carga de trabalho ou as exigências cognitivas, apenas a título de exemplo). Mas outros sentiram-no como algo mais excêntrico, ideológico ou simplesmente uma adversidade com a qual têm dificuldade em lidar, porque por vezes não conseguem compreender e aceitar.

Quando as crenças sobre o trabalho e a motivação se misturam com valores não partilhados (por exemplo, que as pessoas trabalham bem desde que lhes paguem minimamente e a partir daí estão disponíveis para tudo e que o trabalho per se é um valor – que para outros não é, podendo consistir em muitas outras coisas, desde uma forma de subsistência até um meio para a realização), a tentação de manter ou voltar a práticas de gestão não suportadas pela evidência, apenas pela rentabilidade imediata, aparente ou não, aparece.

A guerra traz muita incerteza em cima daquela que já vivíamos decorrente da pandemia, logo agora que parecia estarmos a reduzi-la e a adquirirmos controlo. Nesta espécie de entroncamento cruzam-se situações como aqueles que voltam a ver no fluxo migratório pessoas indiferenciadas (como se de um novo taylorismo se tratasse, em que o outrora professor ou engenheiro fosse agora o candidato perfeito para recepcionista ou empregado de mesa), ou entendem que deve haver muito mais “resiliência” ao número de horas de trabalho (como se a isso se chamasse resiliência), ou a precipitação para o regresso ao trabalho presencial (sem atender às pessoas e às suas necessidades, ao tempo para se reorganizarem para o regresso e à equação se isso é mesmo necessário e em que medida).

E agora, com o preço da energia a subir, vamos ignorar esse impacto na resposta ao teletrabalho? Sim? Não? Como?

E se tinha muitas convicções sobre o assunto… pense novamente. Pense nas pessoas e nos seus comportamentos, pense com mais humildade e menos auto-referenciação. Mais prudência, mais ciência e menos crenças. É necessário ponderar e equilibrar a missão das organizações com as suas pessoas e os seus interesses e necessidades (ou nem o interesse da organização estaremos a defender). Para isso, as lideranças têm, pelo menos, que escutar antes de legitimamente decidirem.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.