Cavaco Silva é, talvez, um dos ex-políticos mais criticados pelo português comum. Diria mesmo que existe uma antipatia generalizada para com o  ex-primeiro-ministro  e ex-presidente da república. Mas então o que aconteceu para que duas gerações de portugueses, a segunda delas já sem memória dos tempos do Estado Novo, tenham concedido a este homem e à direita portuguesa quatro maiorias absolutas, conseguidas com 24 anos de diferença (a primeira em 1987 e a última em 2011, num total de 31 anos no primeiro plano institucional, de 1985 a 2016)?

Esta pergunta é ainda mais pertinente se tomarmos em atenção que se criou uma ideia nos últimos anos de que Portugal é um país estruturalmente de esquerda. Uma ideia criada no mesmo tempo político em que Marcelo, ideologicamente à direita do prof. de Boliqueime, arrasava com mais duas maiorias absolutas.

Mas então de onde surgiu esta perceção generalizada, repetida até à náusea por atores políticos, e pela opinião pública e publicada?

Nos primeiros dois anos de geringonça, tudo indicava que a coisa iria correr mal. Mas o desígnio assumido por BE e PCP que ” qualquer governo do PS é melhor que uma solução de direita”, que acabou por coloca-los reféns de Costa, assegurou entendimentos mais ou menos forçados. O discurso de um Passos ainda ferido, colocando a fasquia do desempenho do Governo demasiado baixa e refém de um diabo que tardava em chegar, fez com que qualquer pequena vitória governativa se assemelhasse a um portento de capacidade e entendimento políticos. BE e PCP vinham de bons resultados eleitorais e o PS crescia nas sondagens. O mapa autárquico de 2017 ajudou a crivar essa ideia: o país virava à esquerda e, desta vez, definitivamente. Como se o “definitivamente” existisse.

Depois? Depois veio Rio. E se o homem do Norte demorou um longo e impaciente mês a proferir a primeira declaração de oposição,  mostrando logo ao que vinha, e ao que não vinha, algo que se repetiu a cada mês sabático de Agosto, e que nem a catástrofe dos incêndios estivais de 2018 o fez ceder,  já a forma pouco discreta como tentou ser muleta do PS, perante a indiferença eufórica de Costa, e sob o argumento submisso de que “é melhor o governo fazer entendimentos ao centro – onde se quis posicionar – do que à esquerda”, parecia catapultar o Partido de Soares para o lugar sempre ambicionado pelo fundador: o de partido charneira da democracia portuguesa, cuja última encarnação datava do longínquo VI Governo provisório, ainda antes da democracia constitucional.

Se algum mérito Rio teve enquanto líder do PSD, e quão difícil é decifrar as suas virtudes no triste consulado que, esperemos, apresta-se a terminar, esse residiu precisamente na constante tentativa de ser uma espécie de vice-primeiro-ministro, obrigando Costa a reiterar, a todo o tempo, que com ele entendimentos só à esquerda.

Ainda se lembram quando ainda líder do Governo representava a ala moderada e centrista do socialismo democrático, em contraponto com Seguro que personificava, por sua vez, a ala esquerdista? É sempre bom lembrar a história quando é também ponto assente o secretário-geral do Partido Socialista quebrou o “Arco de Governação” por razões meramente oportunistas e , pior, por gestão de carreira pessoal,  invocando que era fundamental trazer os partidos de extrema-esquerda para o espaço governativo, e que era com estes que o PS partilhava mais fundamentos programáticos e ideológicos!

A este propósito, é divertido recuperar o texto desta semana de Louçã, em que o “guru espiritual” bloquista acusava, recorrendo aos números, o PS de ter votado mais vezes no Parlamento ao lado de PSD e PS do que dos “parceiros naturais” BE e PCP. Sempre a realidade do sistema constitucional a recolar as peças partidas do Arco de Governação.

Rio, sem pudor, foi o primeiro a afirmar ser necessário capturar os votos do centro-esquerda alegando que era aí que residia a maior fatia do eleitorado, não percebendo que este, o centro-esquerda, já preferia o PS por razões óbvias e que, simultaneamente, estava a hipotecar as correntes liberais, personalistas, democratas-cristãs e conservadoras que tradicionalmente votam no PSD. E, claro, as sociais-democratas de modelo Sá Carneirista. Um verdadeiro manual de aberrações do ponto de vista estratégico- ideológico, que ameaçou colocar em causa o Património federalizador do PPD/PSD como maior partido da Democracia Portuguesa.

Seria fastidioso elencar neste espaço todos os tiros no pé de Rio, mas como desconstruir a geografia mental de  alguém que quer escrutinar o Governo e apresentar-se como alternativa a este,  ao mesmo tempo que ajuda a terminar com os debates quinzenais?

E como aceitar um líder que sempre se demonstrou muito mais duro no discurso político para dentro do que para fora do partido, insultando os seus companheiros enquanto que se abstinha de fazer oposição ao executivo socialista?

O mesmo líder que foi beneficiário passivo de uma gestão sempre baixa das expetativas eleitorais. Nas legislativas 2019 o resultado que obteve apenas foi “mesmo mau” porque ainda assim foi superior aos estudos de opinião catastróficos que davam ao PSD abaixo da inimaginável barreira dos 20%. E esse resultado deveu-se, não esqueçamos, a um “toque a reunir” da massa não-socialista, que engolindo um sapo votou em si para que a esquerda não tivesse uns constitucionalmente desafiadores 2/3 na Assembleia.

Depois de quatro anos de resultados desastrosos e de sondagens anémicas, Rio, acossado por uma alternativa interna realmente desafiadora, decide-se por um golpe de asa no seu discurso: arroga para si vitórias reais ou imaginárias, mas quais teve pouco ou nenhum contributo.

Em primeiro lugar afirma, sem rir, que ganhou as autárquicas deste ano, o que é, não só  politica como factualmente,  falso. Mas já regressaremos a este ato eleitoral. Chama também para si os louros das vitórias regionais na Madeira e nos Açores, conseguidas em condições excecionalmente difíceis pelas estruturas regionais, devido à utilização do aparelho governativo nacional política e orçamentalmente, no resultado final. Tudo isto  sem que Rio alguma vez o tivesse denunciado, como era sua obrigação e até para seu benefício. É por demais evidente, até para os mais simples, que não teve qualquer mérito, ação ou responsabilidade nesses excelentes resultados.

Reclama também para si, imagine-se, a vitória nas Presidenciais, num desesperado despudor que julgávamos impossível. Afirmar que Marcelo ganhou pela ação deste PSD, da pessoa política de Rio ou de qualquer outro agente político ou partidário cujo o apelido não termine em “Rebelo de Sousa”, é simplesmente anedótico.

Centremo-nos agora nas Autárquicas, as eleições em que Rio repetiu a cassete do PC: “Esta é mais uma vitória… and so on”. Se há mérito do ex-autarca do Porto em algumas das escolhas em que fez, há casos em que a degradação da imagem e dos valores do partido não justificaram os inexistentes ganhos eleitorais, vide Susana Garcia na Amadora.

Mas como justificar que reclame a vitória na cidade do Funchal onde, felizmente, não se dignou a deslocar para fazer campanha, não teve qualquer responsabilidade na escolha dos candidatos e, pior, não gastou um minuto para denunciar o apoio ilegítimo e porventura ilegal que o Governo de Costa concedeu à antiga vereação de esquerda, entretanto derrotada?

A cereja no topo do bolo residiu na evidência que a maior vitória do PSD neste ato eleitoral é também a maior derrota de Rio. Falo naturalmente da eleição de Carlos Moedas. Se Rio teve a capacidade de apontar o candidato óbvio, não deixa de ser igualmente claro que Moedas ganhou apesar de Rio e não devido a Rio. Mas mais significativo do ponto de vista da orientação interna do partido, e até dos equilíbrios do regime, é o facto de Moedas ter afirmado desde o primeiro momento que a sua candidatura era inequivocamente agregadora do centro-direita e da direita-democrática, conseguindo formar uma coligação com os parceiros naturais e tradicionais do PSD, em que até a autoexclusão da Iniciativa Liberal ajudou a clarificar posicionamentos.

Mas se o país é endémica e estruturalmente à esquerda, com a maior predominância nas zonas urbanas, suburbanas e até periurbanas, como justificar que a maior cidade do país, Lisboa, se junte à segunda maior cidade, Porto, com uma solução governativa autárquica de direita? Para onde foi o eleitorado consolidado de centro-esquerda que se dizia ser maioritário? O problema é, afinal, da opção ideológica do nosso povo ou das soluções políticas e respetivos atores que cada metade do espectro apresenta num determinado momento?

Por isso mesmo, Paulo Rangel, herdeiro de um legado social-cristão, com as pitadas suficientes de progressismo e liberalismo para ser agregador e coerente com o património de Sá Carneiro e Cavaco, a que se junta uma capacidade e eloquência políticas, e de discurso, com que Rio apenas pode sonhar, constitui em 2021 um contraste arrasador para com o ainda líder(?). E também relativamente a Costa.

Com a eleição de Moedas por mais irónico que isso seja, Rio, não só promoveu ao primeiro plano da política portuguesa um companheiro que não partilha da sua visão do PSD e do país, como comprovou que só um PSD assumidamente líder e federalizador da direita moderada é que pode aspirar a ganhar a confiança dos portugueses e, enfim, ser poder.