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Sérgio Sousa Pinto: “Há um pelotão de fanáticos a patrulhar as ruas, as consciências, a lei e as redes sociais”

Habituado a enfrentar aqueles a quem chama inimigos da liberdade, o deputado do PS diz que, apesar de tudo, “comparar estas patéticas hordas de ‘trolls’ desbocados” à PIDE ou à Stasi é completamente inaceitável.
  • Sérgio Sousa Pinto
27 Novembro 2020, 18h10

“A República à Deriva” é o título do novo livro de Sérgio Sousa Pinto, reunindo textos que o deputado socialista tem escrito no semanário “Expresso”. Sempre com ênfase naquilo que considera ser a defesa da liberdade e o combate aos seus inimigos. Algo que  o levou, entre outras posições públicas, a juntar-se ao abaixo-assinado a favor da objeção de consciência dos pais na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. “A minha preocupação, com toda a franqueza, foi só ajudar a resolver o problema dos dois miúdos de Famalicão”, disse, em entrevista ao “Jornal Económico”.

Já algum deputado do PS lhe apareceu com uma cópia de “A República à Deriva” a pedir dedicatória?

Já. Muitos colegas.

Incomoda-o que muitos daqueles que integram o seu grupo parlamentar pareçam mais ideologicamente distantes de si do que eleitos de outros partidos?

Não acho que isso seja verdade. Os deputados mais ideologicamente próximos de mim são os meus colegas de bancada. De longe.

Num dos textos integrados no livro recorda as dificuldades sentidas por Mário Soares em 1975 e escreve que ele venceu aqueles que considerava inimigos da liberdade. “Que eram, neste país, a maioria. E que, porventura, o são ainda”, acrescenta. Quem são esses inimigos?

Nunca mais sairíamos daqui se estivéssemos a elencar todos. Uns são inimigos declarados: fazem elogios à liberdade, mas não à mesma liberdade de que falamos. É sempre uma liberdade que se identifica com a igualdade material. A liberdade de não sermos incomodados, molestados e perseguidos nunca é suficiente. É sempre uma liberdade mais avançada, que será outra coisa, mas não certamente a liberdade de que falamos. Depois há aqueles estranhos defensores da liberdade, que estão sempre com a liberdade na boca, mas as propostas que fazem, regra geral, têm um preconceito contra as instituições que a protegem: o Parlamento, os deputados, o regime, os políticos, etc. Também não se percebe bem que liberdade seja e em que se sustentaria se não gostam de nada daquilo que lhe é pressuposto e necessário. O que não falta é gente com liberdade na boca. Agora gente que goste verdadeiramente da liberdade não há assim tanta, do meu ponto de vista.

E quem se dê ao trabalho de a defender ainda será em número mais reduzido…

No nosso país, a defesa da liberdade é geralmente a da liberdade económica. Os setores mais dinâmicos e com capitais, e que gostavam de ser menos tributados, falam em nome da liberdade económica. Falar da liberdade em todos os sentidos, no sentido verdadeiramente liberal, é que não. Não temos uma cultura muito orientada para esse tipo de liberdade. Tivemos alguns períodos históricos em que prevaleceu, mas com um exército muito bem composto de inimigos.

Sobre a luta contra a tauromaquia e outras guerras culturais em curso, escreveu que não encontra explicação para que “o PS aceite o sectarismo, as simplificações, a santimónia e, no fundo, a eterna aversão à liberdade que são secreções de ideologias mortas”. Recorrendo ao final do seu texto, há dias em que se sente um touro bravo no seu partido?

Não sei se a comparação é muito lisonjeira para o touro bravo. Existe realmente um ambiente que é inimigo da liberdade. Eu não sou um aficionado. O que me interessa no debate sobre a tourada é a questão da liberdade. Não vejo porque é que eu, ou outros, haveremos de privar os nossos concidadãos que gostam de touradas de assistirem. É incompreensível. As pessoas têm mundividências diferentes, valores diferentes, e uma sociedade civilizada é aquela que permite que todos convivamos com as nossas diferentes conceções e os nossos diferentes princípios, gostos e inclinações. O que não faz sentido é um grupelho de fanáticos apropriarem-se da lei e da força coerciva do Estado para perseguirem quem tem uma maneira de encarar a relação do homem com o animal, com a natureza e com a vida completamente diferente, pois estão enraizados numa tradição diferente e numa relação diferente com o mundo rural. A única questão que me interessa é a liberdade e estar sempre a dar luta aos inimigos da liberdade. As conquistas que os fanáticos conseguem obter num domínio ou outro não me afetam pessoalmente, mas tenho de combater na trincheira disponível porque, mais ou cedo ou mais tarde, estarão a chatear-me nas trincheiras que para mim são decisivas.

Foi também por isso que se juntou ao abaixo-assinado a favor da objeção de consciências dos pais nas aulas da disciplina de Cidadania?

Para lhe dizer a verdade, acabou por ser por razões mais elaboradas do que aquelas que inicialmente me motivaram. A minha preocupação, com toda a franqueza, foi só ajudar a resolver o problema dos dois miúdos de Famalicão que estavam, na minha ótica, a ser vítimas de uma cominação absolutamente desproporcionada e delirante, que na sua versão inicial – e até que se registasse este sobressalto cívico – era obrigá-los a repetir dois anos, o que é uma coisa que só uma cabeça fortemente desorientada poderia conceber.

No entanto, há legiões de pessoas que a bem da força do Estado estão dispostas a que isso aconteça àqueles dois miúdos…

Isso é a legião dos fanáticos que estão certos de serem proprietários da verdade e de encarnarem as forças do Bem – o Bem, por si só, não procura compromisso com o Mal; o Bem procura extinguir o Mal. Os fanáticos, que por definição se sentem investidos de certezas e de verdades absolutas e luminosas, travam um combate sem regras contra as pessoas que têm uma maneira diferente de ver as coisas. Não é um exclusivo português nem seremos o país mais afetado por este fundamentalismo. A sociedade está hoje abaulada por vários fundamentalismos: com os animais, com a educação cívica – apareceu logo gente disposta a rasgar as vestes para defender os valores republicanos, achando que a educação cívica tem algum préstimo no que aos valores democráticos e republicanos diz respeito. Há sempre um pelotão de fanáticos a patrulhar as ruas, as consciências, a lei e as redes sociais. É assim.

Uma PIDE ou uma Stasi teriam hoje em dia o trabalho muito facilitado?

Não, isso não se pode dizer. Não se pode fazer essa comparação. A PIDE, tal como a Stasi, perseguiram e destruíram a vida de muita gente. Comparar estas patéticas hordas de trolls desbocados que patrulham as redes sociais – e que também se exprimem na imprensa livre e pluralista – com os serviços secretos e com a polícia política é absolutamente inaceitável e sobretudo insultuoso para aqueles que verdadeiramente sofreram com a ação da polícia política. Nenhum de nós sofre nada que se compare com aquilo que os que vieram antes de nós tiveram de suportar com as agruras e o terror de uma polícia política, como é evidente.

Da mesma forma que foi muito criticado por alguns nas redes sociais pelas suas posições também lhe acontece o inverso no contacto pessoal com os seus eleitores?

Claro que acontece o inverso, mas um político não é eleito para fazer macaquices para a plateia. Se o objetivo de um político é o de colher aplauso unânime então rendeu-se e está a trair o seu mandato. Um político eleito – sobretudo um deputado, mas não só – que viva para o aplauso e para adular os eleitores, e que só pense nisso e que só trabalhe para isso, traiu o seu mandato, as instituições e a República. É apenas uma pessoa que tem um desvio qualquer de personalidade, com uma insegurança e uma necessidade absoluta de aplauso. Não foi para isso que a República foi instituída.

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