O século XX ficou marcado por um debate político e ideológico entre dois supostos opostos: o capitalismo e o comunismo.

Não só esse debate foi feroz, logo no séc. XIX, entre intelectuais, muito acerca da clivagem entre classes sociais, o papel da mais-valia, a teoria do valor-trabalho, a exploração capitalista e o papel dos mercados, preços e ordens espontâneas versus os efeitos da planificação central, como gerou toda uma estrutura geopolítica, económica e militar que moldou o mundo.

De um lado, os países ditos comunistas (de planificação central da economia e de partido único), com a URSS e a China à cabeça. Do outro, o autoproclamado “mundo livre”, capitalista com democracia liberal, capitaneado pelos EUA, Grã-Bretanha e o resto da Europa ocidental. Assim se estruturou um mundo em dois blocos, em que África, América Central e do Sul e partes da Ásia eram pontos de extensão dessa tensão ideológica e de poder.

Durante muito tempo, a “cortina de ferro” e a Guerra Fria foram os pilares do equilíbrio mundial alimentando essa dicotomia comunismo/capitalismo.

Com a queda do muro de Berlim, o fim da URSS e do bloco de Leste e a derrocada do “comunismo real”, o mundo reestruturou-se, agora com base numa suposta hegemonia capitalista que se espalhou pela Europa de Leste, Améria Latina, Ásia, África e até na China. Certo que se mantiveram a Coreia do Norte e Cuba como resquícios históricos das experiências comunistas, mas o debate parecia encerrado: o comunismo fracassa (por falência e corrupção), o capitalismo sobrevive porque é dinâmico, produtivo e adaptável.

Porém, esta é uma versão pueril da história. Na realidade, não só as experiências centralistas e de economia planificada do séc. XX não produziram nenhum comunismo, como é o capitalismo do séc. XXI (que muito depende do Estado e da social-democracia, e só por isso tem sido bem-sucedido) que mais se está a aproximar do objectivo comunista proclamado por Karl Marx: “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”.

Lendo as obras de Steven Pinker ou Yuval Harari, e salvaguardando-nos dos sensacionismos e das fake news, fica-se com uma panorâmica factualmente rigorosa de como o mundo está a progredir – mais seres humanos, com mais tempo de vida e com mais tempo de vida em qualidade e felicidade – e de como é provável que evolua – num sentido globalista (com menos guerras e violência), de eliminação das nações e de entrega aos robots de cada vez mais trabalho e às inteligências artificiais (IA) de cada vez mais decisões.

Neste tecnocapitalismo em que tudo se passa online, as coisas são controladas remotamente, o dinheiro passa a ser digital, o ser humano passa a ser manipulado na concepção e integrado com a tecnologia durante a vida, onde a velhice e a morte são adiadas, as experiências desencadeadas virtualmente e a alimentação, acasalamento, sono e actividades passam a ser aconselhadas/controladas pela IA, é o mais próximo que alguma vez estivemos de poder não trabalhar e ter o que precisamos (embora isto possa arrepiar os românticos do livre-arbítrio).

Para os mais sabedores, isto não é novidade: Marx dizia que só depois de todo o florescimento capitalista é que surgiriam as condições para o comunismo. Aquilo que se tentou no séc. XX foram aberrações: enormes economias agrárias de tradição imperial (China e Rússia) a implementarem a planificação central, com um pesado sistema burocrático pseudodemocrático. Não é surpresa que tenha sido um desastre.

Aquilo que a globalização do capitalismo tem trazido (com todos os altos e baixos conhecidos) é a aceleração desse florescimento de possibilidades, que estão a abrir caminho para os Rendimentos Básicos Incondicionais, que mais não são que a porta de entrada para o comunismo ou, para quem preferir o pensamento português, aquilo a que Agostinho da Silva chama a idade do Espírito Santo, ou a idade da liberdade, o tempo em que o ser humano deixa de trabalhar para poder ser um poeta à solta.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.