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“Tempestade perfeita” afeta sector mundial do transporte logístico

Antes do final de 2023 não se vislumbra a normalização do transporte logístico mundial, garantem especialistas contactados pelo JE. As fábricas de automóveis já não têm cablagens, nem chips.
28 Maio 2022, 19h00

“Vivemos uma tempestade perfeita na logística e no transporte marítimo”. Quem tem experiência em navegação sabe o que esta expressão traduz. O comentário é feito ao Jornal Económico por Carlos Vasconcelos, de 71 anos, um dos gestores portuguesas que melhor conhece o mercado internacional do transporte contentorizado, seja pelo modo marítimo, seja pelo ferroviário.

Esta sua perspetiva não se restringe à realidade que tem vivido no gigante Mediterranean Shipping Company (MSC). Além disso, é corroborada por outros especialistas em transportes e logística. Alguns manifestam uma preocupação crescente com a atual conjuntura logistica internacional, não prevendo que os problemas existentes consigam ser resolvidos antes do fim do próximo verão.

Os receios de Carlos Vasconcelos, chairman da Medway e membro do board da MSC Portugal – a empresa portuguesa de transporte marítimo do Grupo MSC, que Vasconcelos dirigiu durante 27 anos, até 30 de janeiro de 2019, altura em que foi sucedido no cargo de managing director em Portugal por Marco Vale –, são fundamentados com rigor.

“Em 40 anos de atividade nunca tinha visto os fretes com estes preços, que traduzem aumentos mais de dez vezes superiores aos que eram praticados antes da pandemia ter começado”, refere Carlos Vasconcelos. “Há uma disrupção completa no mercado internacional, da China aos EUA. O porto de Xangai tem ao largo 500 navios que aguardam oportunidade para serem descarregados e carregados.

Nos EUA e na Europa todos estão atentos a este problema. As fábricas chinesas ficam impedidas de escoar as produções e também não têm acesso a matérias primas para produzir mais. Na Europa faltam stocks. No porto de Los Angeles há cerca de 300 navios ao largo que aguardam vez para serem operados pelos estivadores”, adianta o especialista.

“Este problema surge pela combinação de vários fatores de sinal contrário que criaram desfazamentos entre a abertura e o fecho da atividade portuária no oriente e no ocidente. A pandemia desencontrou os fluxos das cadeias logísticas”, explica um grande operador ibérico de transportes logísticos.

“As infraestruturas portuárias do Oriente encerram quando as suas congéneres ocidentais abrem, contribuindo para o aumento de stocks orientais no momento em que não há stocks na Europa”, comenta a mesma fonte, admintindo que “a falta de stocks, sobretudo nas fábricas do sector automóvel, vai ser agravada no imediato, tendendo a abrandar só mais para o fim do verão”.

A progressiva modernização efetuada nos últimos sete anos nas maiores frotas de navios porta contentores (com navios muito maiores) poderia facilitar a regularização deste problema, mas a capacidade de escoar mercadorias só alcançará um descongestionamento internacional ao fim de, pelo menos, quatro meses, o que aponta para o mês de setembro como a eventual data para vislumbrar um horizonte mais regularizado no transporte logístico internacional, segundo previsões de varios especialistas.

Note-se que, quando, em 2015, o terminal de contentores do porto de Sines recebeu a viagem inaugural do porta-contentores MSC Zoe, com 395 metros de comprimento, um calado de 16 metros e uma capacidade de transporte de 19.224 contentores de 20 pés de comprimento e carga de 199.272 toneladas – construído em Seul, por 93 milhões de euros, nos estaleiros da Daewoo, para a MSC –, foi então considerado como um dos maiores navios porta-contentores do mundo, sendo o terceiro da série da Classe Olympic da MSC, depois do MSC Oscar e MSC Oliver. “Hoje esta classe foi ultrapassada porque os novos porta-contentores carregam 24 mil contentores”, explica Carlos Vasconcelos, e, “mesmo assim, não conseguem estabilizar a disrupção sentida no transporte logístico internacional”, refere.

É difícil perceber quem realmente fica lesado nesta crise. “Os armadores vão salvar-se. Os transitários também. Quem cobrava margens de 5% em operações com contravalor de mil (seja dólares ou euros), agora cobra as mesmas comissões percentuais sobre valores de 10 mil. Neste enquadramento, o tráfego portuário sofreu uma redução de 6% a 7%, afetando os transportes para as industrias exportadoras do sector automóvel, para os importadores de componentes para fabrico de viaturas, desde peças de eletrónica às tradicionais cablagens, mas também o transporte de cereais, os minerais e os cimentos, o que se repercute na subida de preços destes produtos e no consequente disparo da inflação”, explica uma fonte do sector da lógística internacional que pediu anonimato. “Não é expectável que estas disrupções sejam atenuadas antes do final do verão de 2022”, admite a mesma fonte.

Uma visão menos rígida sobre este problema é partilhada ao Jornal Económico por José Pires da Fonseca, especialista em transportes internacionais e redes logísticas de dimensão transcontinental (europeias, da Ásia Central, da Índia e africanas), atualmente integrado no grupo de executivos do gigante Deutsche Bahn (DB), controlado pelo Estado alemão.

“Todo o sistema logístico travou a fundo e a sua capacidade de resposta – que tinha sido desenhada para as necessidades que o mundo vinha alimentando diariamente –, foi afetada pelas diferentes fases em que a pandemia de covid se tem desenvolvido nos diferentes continentes do planeta e nos hemisférios norte e sul, criando diferentes velocidades no supply chain global”, explica Pires da Fonseca.

“O melhor exemplo para perceber o que está a acontecer no transporte logístico a nivel mundial pode ser dado por um acidente que ocorre em cima do tabuleiro de uma ponte, impedindo que o trânsito seja regularizado de forma homogénea, além de requerer algum tempo até que todas as viaturas voltem a circular a uma velocidade normal ao longo dessa ponte”, adianta o especialista internacional.

“Parece-me que até finais de 2023 – ou, no mais tardar, até ao início de 2024 –, estará tudo normalizado, com os fluxos de transporte lógisticos regularizados, garantindo que as fábricas podem escoar a sua produção e que recebem os componentes necessários para manter as linhas de montagem dentro dos ritmos que vinham assegurando antes da pandemia de covid”, considera Pires da Fonseca.

Embora constitua um problema humanitário de grande dimensão, porque deslocou fluxos de milhões de pessoas em todo o mundo, a questão da guerra na Ucrânia “é quase marginal na regularização do transporte logístico internacional que trabalha para as indústrias da Ásia e dos EUA”, considera Pires da Fonseca. “Os preços da energia surgem aqui como uma das componentes mais sensíveis a esta conjuntura, sendo paradigmático o valor de transação de um combustível tradicional como o carvão, cujo preço da tonelada disparou dos 30 dólares para os 380 dólares”, refere o especialista.

Estrategicamente – aconselha Pires da Fonseca –, “o sector do transporte lógistico deveria aproveitar a atual conjuntura para repensar as migrações de alguns fluxos rodoviários para a ferrovia e para o short sea, bem como a implementação de novas ligações ferroviárias, de forma a aumentar a eficiência e a sustentabilidade dos fluxos internacionais que agilizam o fornecimento de matérias-primas e componentes às industrias e que asseguram o escoamento regular da produção industrial, facilitando as trocas internacionais aos grupos empresariais que vivem das exportações e das importações”. “Mas há um prazo para tratar disso, que acabará precisamente no final de 2023”, defende Pires da Fonseca.

No entanto, quem tem mercadorias a bordo de porta-contentores localizados próximos do Mar Negro, ou em rotas com destino à Turquia “desespera”, segundo refere o gestor de uma PME portuguesa que importa matérias primas para produção industrial.

Pedindo anonimato, admite que o custo total de transporte vai muito além dos cerca de 10 mil dólares pagos por cada contentor (que só por si representa cerca de cinco vezes mais do que pagava em 2019, antes da pandemia de Covid).

“Vamos começar a sentir falta do plastico normal e de outros produtos utilizados para produzir embalagens, como o cartão e o próprio alumínio, além de que já não há suficiente latex para fabricar preservativos ou luvas cirurgicas, o que pode causar problemas às unidades hospitalares”, explica a mesma fonte.

“O congestionamento dos portos está a ser agravado pelo congelamento das mercadorias que se destinavam à Rússia, que agora estão paradas nos portos ou dentro dos navios, sem data que permita saber quando serão transportadas”, refere a mesma fonte, considerando que estes problemas notam-se em especial no transporte marítimo que cruza as rotas para a Turquia e para o Mar Negro.

“Há quem consiga aproveitar algum transporte aéreo, mas não é fácil e sai caro, porque a maior parte dos voos charters utilizados por operadores europeus estão a ser contratados para transportarem equipamento militar, hospitalar e alimentos, para as rotas atualmente utilizadas para abastecer a Ucrânia”, adianta a mesma fonte. Alguns destes aviões cargueiros trazem nos voos de regresso algumas cablagens produzidas na Ucrânia, mas sobretudo produtos de aço, tubos e componentes, como válvulas e “tês”.

A indústria metalomecânica e do sector automóvel praticamente já não conseguirá concretizar compras à China em 2022, porque os únicos espaços com reserva disponível só se encontram nos porta-contentores que vão partir dos portos chineses no quarto trimestre deste ano.

Isto acontece no maior porto do norte da China, que serve a região de Pequim, e que é o porto de Tiajin; acontece em Hong Kong; acontece nos portos de Qingdao e de Guangzhou; em toda a região de Guangdong, que é onde se encontra o longo grupo de portos de Shenzhen, bem como na baía de Hangzhou, onde está o gigantesco porto de Ningbo; e acontece no maior porto do mundo, que é o de Xangai.

É por isso que há rarefação de semicondutores produzidos na China, bem como de chips. Além disso, também não há navios ro-ro disponíveis para carregar e descarregar viaturas em navios de longo curso.

Para Adão Ferreira, secretário-geral da Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA) esta situação está a provocar o congestionamento da produção industrial dos maiores fabricantes do sector automóvel em Portugal, por indisponibilidade de instalação das cablagens produzidas na Ucrânia e por falta dos chips e semicondutores oriundos da Ásia. “De janeiro a março de 2022 as exportações portuguesas de automóveis caíram 6,2% em comparação com igual período de 2021, mas em março a queda das exportações atingiu 18%, sabendo-se que em abril e em maio continuaram a cair”, refere Adão Ferreira.

Para resolver a impossibilidade de aceder às cablagens dos fornecedores tradicionais, o sector automóvel está a procurar alternativas junto de fabricantes do Leste da Europa ou de Marrocos, mas este processo deverá demorar entre três e seis meses até ao fornecimento destes componentes estabilizar. “Já a produção de semicondutores e chips é um caso mais complexo e difícil de contornar”, esclarece Adão Ferreira.

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