O caos é bem-vindo, porque a ordem falhou

Karl Kraus

 

A 10 de Dezembro do ido ano de 2018, o deputado britânico Lloyd Russell-Moyle dirigiu-se à mesa da Câmara dos Comuns e, em plena sessão, levantou o maço cerimonial – the Mace –, símbolo da autoridade real no Parlamento, sem o qual os Comuns não podem debater, nem aprovar leis.

Obedecendo à vetusta tradição, simbolizada na forma de uma formidável peça de joalharia seiscentista, em empréstimo permanente à Câmara desde o reinado de Carlos II, os trabalhos pararam. Sob protestos é certo, mas assim estiveram, suspensos, até que, intercetado o representante de Brighton Kemptown e recuperado o maço pelo Serjeant at Arms, fosse o mesmo reposto no seu lugar à mesa, devolvendo simbolicamente à Casa a legitimidade para voltar a debater e a legislar em nome do povo.

É deste maço que é feita a história de uma democracia. E da sua substância, preciosa e perfeita, mas sempre frágil, se alimenta a liberdade de todo um povo.

Ali, como noutros povos, pessoas livres encontram, no quotidiano exercício da sua liberdade, a memória de momentos fundadores que se definem como símbolos de uma ordem democrática em que a voz de cada uma conta.

É essa história e o seu legado que são esquecidos na ofensa que representa tomar a decisão de um povo soberano em referendo, certa ou errada que seja, como impertinência de gente que não sabe colocar-se no seu lugar. E ofensa ainda não hesitar em castigá-lo pelo atrevimento.

A verdade é que the Mace reside ainda e sempre nas mãos do povo. Disso necessita a ordem democrática.

Mas, embriagada pela húbris, a Europa à beira do caos (e o nosso primeiro-ministro, no modo como se refere ao Brexit) não compreende(m) que não é “de um acto divino” que precisamos. Precisamos, isso sim, de democratas.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.