Depois de ter passado anos a fio a lançar os dislates de Trump aos quatro ventos, depois de o ter levado ao colo até à Casa Branca, depois de ter ganhado milhões de utilizadores (e de dólares) à sua conta, eis que o amor de ambos chegou ao fim. Após alguns sinais públicos de desconforto de Jack Dorsey, o CEO do Twitter assinou sozinho os papéis do divórcio e pôs Trump no olho na rua. Tirou-lhe o pio definitivamente. Pelo menos por agora…

Por um lado, a decisão tresanda a arrependimento tardio, se não mesmo a puro oportunismo político. Por outro lado, tem suscitado uma inesperada coligação entre trumpistas e antitrumpistas, apontando o dedo acusatório contra o Twitter. Infrequentáveis uns, mais ilustrados outros, ambos clamaram em uníssono: censura, censura, censura!

Semelhante veredicto constitui, porém, uma simplificação grosseira da realidade. Dar respostas fáceis a problemas difíceis é, aliás, típico de todos os populismos, venham eles da direita, da esquerda ou de parte incerta.

Antes de mais, é importante sublinhar que a censura é a forma mais grave e ostensiva de violação da liberdade de expressão. A proibição da censura está longe de esgotar o conteúdo vasto e multifacetado desta liberdade, que providencia o oxigénio que a democracia respira, mas constitui o seu núcleo mais intangível.

Para que a conduta de uma qualquer entidade – pública, religiosa ou privada – com a capacidade de silenciar outrem seja qualificada como censura é necessário, porém, demonstrar que os conteúdos bloqueados ou banidos correspondem verdadeiramente ao exercício da liberdade de expressão.

E, ao contrário do que alguns julgam, nem tudo o que sai da boca para fora – de políticos, figuras públicas ou cidadãos – merece a proteção da 1ª emenda da Constituição americana, do artigo 37º da Constituição portuguesa ou de outras disposições que consagram, com declinações relevantes, a liberdade de expressão.

Não exerce a liberdade de expressão quem grita “fogo, fogo”, numa sala de espetáculos apinhada de gente. Não exerce essa liberdade um ministro do culto que, dirigindo-se aos seus fiéis, escreve um livro onde explica aos maridos como punir fisicamente as respetivas mulheres (ainda que para defender que o objetivo do castigo é simbólico e não infligir dor). E, da mesma forma, não atua ao abrigo da liberdade de expressão o líder político que abertamente instiga os seus apoiantes, inebriados pela sua presença carismática, à prática de crimes ou os incita à guerra, à rebelião ou à subversão do Estado de direito.

Sob pena de contradição insanável, as condutas que constituem crime não podem beneficiar da proteção da liberdade de expressão. Se as pessoas forem impedidas de prosseguir com estas condutas ilícitas ou se forem punidas pelas que já praticaram, não estarão, portanto, a ser censuradas.

Questão diversa é a de saber quem deve tomar as decisões – ultradelicadas, porque o mundo não é a preto e branco – de apagamento dos conteúdos não protegidos pela liberdade de expressão, quando alojados nas redes sociais, e, no limite, de bloqueio dos utilizadores recorrentemente responsáveis pela sua colocação.

Assumindo que a resposta não pode ser “ninguém” – ainda que subsistam vozes a defender que as redes sociais devem continuar a viver em “estado de natureza” –, só há três caminhos possíveis: os tribunais, nos termos da lei; as próprias redes sociais, num quadro de autorregulação; as redes sociais, mas em conformidade com um regime jurídico específico e, naturalmente, sujeitas a revisão judicial. É nesta última direção que navega o Digital Services Act (artigo 20º), recentemente proposto pela Comissão Europeia.

Por último, a acusação de que o Twitter censurou Trump assume aquilo que, em rigor, importaria começar por demonstrar: que, na era digital em que vivemos, a liberdade de expressão garante a todos o direito a ter um púlpito, para a partir dele falar aos seus seguidores, amigos, fãs ou ao mundo inteiro.

Ou seja, que a liberdade de expressão já não é apenas, como nos seus primórdios, o direito negativo a não ser perseguido pelas autoridades por aquilo que se diz ou escreve, em matéria política, religiosa ou sobre outro tema qualquer. Mas comporta também o direito positivo aos instrumentos de projeção da voz e do pensamento, Urbi et Orbi, que as redes sociais especificamente proporcionam – ainda que estas sejam empresas privadas.

Se as redes sociais fossem meios de comunicação social tradicionais, a resposta seria negativa. Ninguém tem o direito fundamental a escrever artigos de opinião nos jornais, nem a ter um espaço de comentário na televisão. Se as redes sociais fossem simplesmente uma praça pública, no centro da nossa cidade, a resposta seria positiva. Em democracia, qualquer um pode pôr-se em cima de um banco e desatar a discursar no meio da rua. O único risco é passar por louco.

Sucede que as redes sociais não são nem uma coisa nem outra. São uma realidade nova e, por isso, não adianta tentar enfiá-las à força em conceitos antigos.