Mais de dois milhões de ucranianos, sobretudo mulheres com filhos, encontraram refúgio na Polónia desde o início da guerra. Embora os dois países compartilhem história e cultura, o acesso à saúde reprodutiva não podia ser mais distinta. As refugiadas recorrem a grupos de ajuda, muitas inconscientes de que parte dos seus direitos humanos desapareceram ao cruzar a fronteira, segundo o “The Guardian”.
Enquanto na Ucrânia os abortos são legais nas primeiras doze semanas de gravidez, a contraceção oral é vendida sem receita médica e a pílula do dia seguinte está amplamente disponível, na Polónia, o aborto é quase completamente proibido e o acesso à contraceção é classificado como o pior da Europa. Muitos médicos recusam-se até a prescrever a contraceção de emergência ou mesmo dispositivos intrauterinos por motivos éticos.
A ativista ucraniana de direitos reprodutivos Oxana Lytvynenko, que vive na Polónia há 16 anos e ajuda refugiados junto da fronteira, diz que algumas mulheres não têm ideia de o que seu acesso a serviços de saúde reprodutiva desaparece ao cruzar a fronteira.
“Estão completamente despreparados para a situação aqui, não conhecem a lei. “É difícil [contar a verdade] porque não queremos traumatizar novamente estas mulheres logo depois de estarem tão felizes por estarem seguras novamente”, partilha.
Foi este o caso da paciente da ginecologista ucraniana Myroslava Marchenko, que trabalhava numa clínica particular em Kiev até que as primeiras bombas começaram a cair na Ucrânia. As duas fugiram para garantir a sua segurança, mesmo tendo uma interrupção da gravidez agendada para o dia seguinte depois de testes pré-natais mostrarem uma grande probabilidade de síndrome de Down no feto. Na Polónia, abortos devido a anormalidades fetais são ilegais.
“Ela ligou-me e disse: ‘Oh, meu Deus, eu não sei o que fazer, porque o tempo está a esgotar-se e a minha gravidez está a crescer, mas eu não quero criar esta criança porque é uma guerra e eu não consigo gerir’”, conta Marchenko. Foi, diz, a primeira vez que a paciente entendeu o impacto das leis de aborto da Polónia e dos obstáculos para ter à contraceção de emergência na vida das pessoas. Marchenko aconselhou a paciente a viajar para a República Checa para ter acesso a um aborto seguro.
A ativista Lytvynenko diz que conheceu mulheres na fronteira que lhe pediram para ter acesso a medicamentos para interromper uma gravidez, mas que a resposta é uma questão de sorte em função das pessoas que as recebem. “Se for alguém progressista, feminista, então poderão colocá-las em contacto com as pessoas certas. Mas se for algum homem aleatório, ou alguém religioso, então não. Eles não se importarão ou dirão que [o feto] é o anjo de Deus e que é preciso mantê-lo.”
O “The Guardian” informa que os membros do movimento antiaborto da Polónia também estão presentes na fronteira para receber refugiados. Nas primeiras semanas da guerra, voluntários do grupo “Vida e Família” distribuíram folhetos em que retratavam fetos desmembrados e citando o aborto como a maior ameaça à paz. Os folhetos também aconselhavam as mulheres grávidas a denunciar à polícia quem lhes oferecesse um aborto.
“A minha única esperança é que nenhuma das mulheres ucranianas que precisam de um aborto tentem fazê-lo legalmente na Polónia”, disse Lytvynenko. “Espero que continuem a viajar para o oeste, para a Alemanha. Porque assim que declararem a gravidez ao médico, tudo estará acabado para elas”.
Enquanto Marchenko espera para receber uma licença médica polaca, está a trabalhar com uma organização polaca de direitos das mulheres, a Federa, numa linha direta em ucraniano para mulheres que procuram ajuda relativamente a serviços de saúde reprodutiva.
Em cerca de dez chamadas por dia, 10% são sobre como obter um aborto. “Embora haja uma guerra, as questões de reprodução ainda estão lá, especialmente porque muitas mulheres ainda não conseguiram garantir a contraceção”, afirma.
O Aborcyjny Dream Team, um grupo que ajuda mulheres a obterem comprimidos de aborto proveniente do estrangeiro, revela que 158 ucranianos lhes pediram ajuda desde o início do conflito a 24 de fevereiro.
À medida que continuam a surgir evidências e relatos de violação e agressão sexual a ucranianas (e ucranianos), ativistas e políticos na Polónia também estão a ficar cada vez mais preocupados sobre como as vítimas que procuram segurança podem ter acesso um aborto legal se assim o desejarem.
Entre 2010 e 2020, menos de cinco abortos legais por ano foram realizados na Polónia por violação uma vez que as mulheres precisam de autorização de um promotor.