1. Gosto muito do humor inteligente de Ricardo Araújo Pereira (RAP) e da sua insistência em visar a atualidade política, económica e social portuguesa. É um serviço público. Num país tão propenso à reverência do ‘excelentíssimo senhor doutor’, é importante que o humor cumpra o maior dos seus desígnios: questionar o Poder, apontar as fragilidades das personagens, chamar a atenção para as suas fraquezas e contradições, quando não mesmo para as respetivas mentiras.

Os poderosos, com ou sem aspas, de todos os sectores, deveriam ser eleitos pelo mundo do humor, e não só por RAP, que considero o maior expoente desta arte entre nós, como o objeto principal do seu trabalho. Atrevo-me, até, a dizer que, neste sentido de questionar o Poder, RAP tem sido quase tão importante para a sociedade portuguesa como o juiz Carlos Alexandre no âmbito da Justiça. Eles e outros, poucos, têm estado na linha da frente por uma sociedade mais higienizada. Creio, portanto, que posso passar ao ponto seguinte.

2. Desagradou-me, profundamente, o episódio do “Isto É Gozar Com Quem Trabalha” com que RAP se atirou a dois candidatos do Chega nas eleições autárquicas que vão decorrer no domingo. Um deles, sobretudo, o senhor Carlos Curto, candidato a presidente da Câmara Municipal da Covilhã, pessoa limitada, não merecia todo aquele destaque e ridículo, que seria bem-vindo no caso de qualquer grande decisor político, mas que se tornou absolutamente gratuito por aplicado a um homem simples, sem responsabilidades, incapaz de perceber as consequências do teste a que a sua ambição sujeitou a pouca capacidade cultural e académica.

Bastava uma passagem da chamada entrevista a uma rádio local para se perceber o ponto. Não era preciso continuar a esfaquear repetidamente o cadáver perante o riso fácil da plateia.

3. Eu sei, e isso compreendo, que RAP queria, quer, chamar a atenção para a forma como o Chega, sem qualquer critério nem exigência, encarou estas eleições: concorrer no máximo de autarquias possíveis (serão 220). Essa constatação eu acompanho. E, para isso, para somar votos e continuar a apresentar-se como uma realidade em crescimento, o partido de André Ventura não hesita em passar por cima das mais elementares precauções quanto à capacidade das pessoas que apresenta a sufrágio.

Este senhor da Covilhã, como outros candidatos, são pessoas impreparadas e não correspondem a qualquer necessidade política. O Chega, pode dizer-se e isso é uma crítica válida, está a usar pessoas. Mas, para nos reafirmar esta evidência, RAP não tinha que retalhar vezes sem conta aquele homem simples.

4. Não trago este assunto aqui por causa de RAP. Esse é só o ponto de partida. O humorista voltará rapidamente ao seu caminho de excelência, não tenho dúvidas. Relembro aqui este episódio apenas porque me preocupa que, na ânsia de diabolizar alguns dos perigos que o Chega pode transportar, muitas pessoas na sociedade portuguesa estejam em risco de perder o equilíbrio.

O extremismo, tanto de direita como de esquerda, não se combate desta forma – e eu, esta semana, até ouvi uma pequena entrevista numa rádio (creio que a Antena 1), muito genuína, a um outro homem simples que, aos 101 anos, integra as listas da CDU na freguesia de Cortiços, concelho de Macedo de Cavaleiros. O senhor, comunista mais velho que o próprio PCP, é outro testemunho de época e foi tratado com a curiosidade jornalística associada à dignidade que a pessoa sempre deve merecer.

5. Não pode haver portugueses simples que são bons e outros que são maus apenas porque gostamos mais ou menos das ideias que representam. Cometer o erro de ir por aí, além de ser injusto, é, neste momento concreto, ajudar à vitimização de quem pretende ser vítima. Portugal não pode ter a ‘inteligência’ de um lado e os deserdados da escola do outro. Mas, se se quiser ver o Chega ao nível do PCP e BE somados (e ambas as coisas eu dispenso!), então continuemos por este caminho.