A Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA) levou recentemente a cabo um inquérito aos oficiais das Forças Armadas (sócios e não sócios da AOFA), uma iniciativa meritória e extremamente bem acolhida pelos oficiais. Responderam 1.105 oficiais (55,41%), de um universo de 1.994.

As respostas deviam merecer a atenção dos sociólogos. Sem a pretensão de fazer uma análise sociológica dos resultados, dada a falta de qualificação na matéria, não posso deixar de sublinhar alguns aspetos extremamente pertinentes. Gostaria de salientar as respostas dadas no capítulo do inquérito dedicado ao “associativismo militar vs. sindicalismo militar”. As respostas foram bastante expressivas. O inquérito vem dar-nos nota da evolução registada no pensamento dos oficiais das Forças Armadas.

Há 30 anos era tabu falar de associativismo militar. Um inquérito feito nessa altura sobre este tema teria seguramente respostas muito diferentes. Ora, 72,85% dos inquiridos considera que as associações profissionais militares deveriam ter direito a participar na negociação coletiva. O inquérito não elabora mais sobre o tema. Mas o resultado a que se chegou não pode ser considerado despiciendo.

Esta e outras respostas sugerem abertura de espírito à transformação das associações profissionais em sindicatos. Essa é, aliás, a tendência verificada num número muito significativo de países europeus, alguns membros da NATO. Como se isso não bastasse, o direito dos militares a constituírem sindicatos encontra-se devidamente consagrado no espaço da União Europeia. 75,1% dos oficiais pronunciaram-se a favor da existência do sindicalismo militar em Portugal, enquanto uma larga maioria (61,65%) refutou o direito à greve.

Houve uma evolução significativa ao longo dos anos sobre o modo como os oficiais passaram a ver o associativismo militar. Não é mais percecionado como uma atividade sediciosa contra os chefes militares, um modo de subverter a ação de comando, uma forma de corroer a disciplina, ou um campo fértil para a luta político-partidária; mas sim, uma atividade exclusivamente associada à defesa de direitos dos militares, que escapam legalmente à intervenção das chefias militares, preenchendo um vazio.

Como já tive oportunidade de argumentar noutras ocasiões, a nomeação das chefias militares pelo poder político tem consequências. Os chefes ficam com a sua ação reduzida, não se podendo jamais arvorar em “chefes do sindicato”, recorrendo à frase do general Soares Carneiro enquanto CEMGFA, que ficou célebre.

Os chefes passaram a ter uma dupla lealdade, e a lealdade a quem os nomeia é muito forte. Sobre isso não há volta a dar. Ao contrário daquilo que muitos defendem, o confronto das chefias militares com a tutela não é a alternativa, sempre que surja matéria “corporativa” geradora de tensões. Num Estado democrático, as chefias e a Instituição militar sairão sempre a perder com o confronto. A convivência tem de ser cordata e pacífica.

É para os assuntos que caem fora do raio de ação das chefias militares que devem existir as associações profissionais. Por perverso que possa parecer, é o controlo democrático das Forças Armadas que justifica a sua existência. O relacionamento entre chefes militares e dirigentes associativos não deve ser visto como antagónico, mas sim cooperativo. A empatia deve prevalecer sobre a animosidade. O chefe militar e o dirigente associativo estão do mesmo lado da barricada. Não são opositores nem competidores, porque os seus domínios de intervenção, apesar de próximos e sinergéticos, não se sobrepõem.

Gostem ou não, os responsáveis políticos têm de se convencer que o controlo das Forças Armadas nas sociedades democráticas implica “checks and balances”. Têm de assumir na plenitude as dinâmicas sociais existentes nas democracias liberais do espaço geográfico onde se encontram, correndo o risco de assumirem posições retrógradas e arcaicas. A legitimidade democrática não lhes confere a prorrogativa do “autoritarismo democrático”. Têm de se adaptar e aprender a viver com isso.

Este inquérito promovido pela AOFA dá-nos conta de algo que, porventura, poucos se terão apercebido. Os oficiais das forças armadas foram de um modo progressivo e silenciosamente interiorizando os valores associados ao modelo ocupacional, acentuado com o fim do serviço militar obrigatório, afastando-se do modelo institucional que prevalecia quando ingressaram nas fileiras, em que por definição a vocação desempenhava um papel crucial.

O que não deixa de ser fantástico é ouvir quem fez a apologia do modelo ocupacional – provavelmente bem – vir agora justificar a falta de soldados nas Forças Armadas com a ausência de vocação, recorrendo aos argumentos que sustentam o modelo institucional para justificar a sua inépcia.