Ler as histórias de sobrelotação habitacional que se seguiram ao incêndio da Mouraria na rua do Terreirinho fez-me detestar, por momentos, aquilo em que se transformou Lisboa. Cresci nesta cidade, vivi nela durante muitos anos, conheço os bairros, é o meu local de trabalho. Assisti à gentrificação de Lisboa nos últimos anos, à entrada de fundos imobiliários estrangeiros que saquearam a cidade, ainda antes de esta se tornar moda entre os nómadas digitais.

E todos assistimos à implosão de vistos Gold que fomentou a compra de imóveis por valores elevados, apenas para servirem como meio de obtenção de títulos de residência e nacionalidades.

Numa cidade com um parque habitacional público tão reduzido, era uma questão de tempo até chegarem as consequências dramáticas. A especulação imobiliária praticada pelos proprietários foi estrangulando quem desejava continuar a habitar na cidade, tornando muito difícil a possibilidade de adquirir imóveis ou de arrendá-los com rendimentos demasiado baixos face à especulação praticada.

Lisboa tem atraído desde os mais ricos até aos mais pobres, e é na diferença de tratamento que conseguimos ver como se tornou uma cidade de profundas desigualdades. Os milhares de migrantes que partem dos seus países de origem e escolhem Lisboa para uma vida melhor encontram dificuldades de todo o tipo: burocráticas (junto das autoridades competentes lentas ou ausentes) e de procura de habitação (face a proprietários que muitas vezes recusam arrendar a imigrantes mesmo tendo contratos de trabalho).

Na verdade, são as suas comunidades já presentes em Lisboa que têm feito o papel de mediação cultural, acolhimento e integração.

Observámos a cidade a adaptar-se a uma economia da precariedade que faz com que muitos destes imigrantes apenas consigam obter uma fonte de rendimento através dos seus transportes, sem vínculos ou proteção laboral, trabalhando o máximo número de horas possível em plataformas de entrega de refeições ou transporte.

Durante a pandemia foram esses trabalhadores que vimos nas ruas desertas a garantirem a sobrevivência de tantos pequenos negócios, garantindo também que nada faltava aos que permaneciam em teletrabalho.

Não é invulgar descer a Avenida da Liberdade e vê-los a dormir em bancos de jardim durante pequenas pausas agarrados às bicicletas como se se agarrassem à vida. É principalmente na Mouraria que muitas destas comunidades já criaram raízes e ainda têm a hipótese de encontrar um quarto ou uma cama.

É uma população vulnerável por ser alvo de racismo e xenofobia, de exploração laboral, mas também exploração habitacional, com proprietários a cobrar, sem escrúpulos, por beliches em espaços com condições indignas e de sobrelotação. O incêndio da Mouraria não foi espoletado por uma crise de imigração, mas sim por uma crise de habitação transversal a muitas classes e origens, um dos maiores problemas sociais que enfrentamos.

O diagnóstico está feito há algum tempo, mas a quem compete apresentar soluções? Ao Governo, a órgãos nacionais, mas também às autarquias. Nenhum pode descartar responsabilidades. E, lamentavelmente, o que vimos nos últimos tempos foram tentativas à direita de criar a narrativa de que este seria um problema de imigração.

Não é a chegada de imigrantes que causa o problema, é a falta de condições políticas e de vontade política para que todos, sem exclusão, possam habitar e trabalhar nesta cidade sem risco para a sua vida e dignidade.