1. Insistirei as vezes que for preciso e leve o tempo que levar: o acidente no qual o automóvel em que seguia o ministro Eduardo Cabrita atropelou um cidadão de 43 anos, provocando-lhe a morte, é elucidativo de como funciona o país. ‘Isto’ não é bem uma democracia. É uma pequena comunidade em que o Poder continua a proteger os seus sem que o escândalo seja devidamente interiorizado pela maioria dos cidadãos.

Deixemo-nos de rodeios. Não é normal, nem crível, que mais de três meses depois (o acidente ocorreu no passado dia 18 de junho), os vários inquéritos ainda estejam em segredo de justiça.

Já aqui escrevi sobre isto, sobre o escândalo que representa, e está na altura de o dizer claramente: não acredito que um inquérito tão simples possa demorar tanto tempo. Na minha mais profunda convicção, este é um caso que ilustra a dependência dos funcionários do Estado, vergados à vontade do poder político, às suas pressões e vontade.

2. Este acidente também mostra a falência dos partidos enquanto representantes dos cidadãos. É fácil falar da fuga do delinquente Rendeiro, mas parece que a morte de um português e o apuramento das circunstâncias exatas em que ela aconteceu, não serão importantes de ser conhecidas se podem colocar em causa responsabilidades políticas de um ministro.

Repare-se como, à esquerda, os partidos da geringonça se calam e à direita, excetuando o Chega, que já pediu um inquérito parlamentar em agosto, também não se trata o assunto com a gravidade que merece.

3. Ministério Público, Administração Interna (tutelada por Eduardo Cabrita), polícias, INEM: nenhuma destas entidades que prometeu averiguar, inquirir, conseguiu ainda perceber o que se passou naquele dia e fazer uma simples perícia à velocidade a que seguia o automóvel. Alguém acredita nisso? E, percebendo o país que somos, vamos continuar a fingir acreditar que o controlo do sistema policial e de Justiça acontecem apenas em países como a Hungria e a Polónia?

4. Considero este caso até mais grave do que o conhecido processo de indicação do procurador português para a Procuradoria Europeia, o local onde se vão seguir e investigar os casos de corrupção que afetam a aplicação dos fundos europeus. Nesse caso todos perceberam o que aconteceu: indicou-se um dos nossos (melhor dizendo: dos deles) para defender os seus.

Foi um escândalo? Foi.

Envergonha Portugal? Sim, devia envergonhar.

Permite adivinhar a forma como no Estado português se aplicam uma parte desses fundos? Claro, não há outra leitura.

5. Este caso do acidente na A6, no entanto, tem uma dimensão ainda mais brutal. Mostra como o apuramento das circunstâncias em que se deu a perda de uma vida de um cidadão – que pode ter acontecido em circunstâncias penalizadoras da carreira de um político que é ministro – importa menos para o Estado, e o partido de turno, do que a proteção dos interesses políticos do grupo, sejam eles umas eleições ou uma remodelação – ou, até, no limite, a proteção de um amigo.

É por situações destas que quando um Homem como o vice-almirante Gouveia e Melo dá por terminada a sua missão nacional muitos de nós ficam a pensar no país que somos em contraponto àquele que poderíamos ser se aproveitássemos devidamente os nossos melhores. E não nos devemos conformar.

Passaram mais de três meses desde aquele dia 18 de junho. Vários inquéritos foram imediatamente anunciados, um pelo Ministério Público, através do DIAP de Évora; outro pela GNR; outro pelo INEM; e outro, ainda, pelo Ministério da Administração Interna.

Um carro, uma vítima, um motorista, um ministro. E passado todo este tempo os vários inquéritos ainda continuam, simétrica e convenientemente, em segredo de Justiça.